domingo, 23 de janeiro de 2011

O direito do abutre

Meu debut com esta lamentável característica do pacato cidadão brasileiro começou atuando em uma enchente próximo ao aeroporto do Recife em 1983. Depois se repetiu em todas as enchentes nas quais participei no Ceará, Bahia, Minas, São Paulo, Pernambuco etc e se repetiu em Floripa, Barreiros PE etc etc.

Desnuda a característica de solidariedade que achamos que é universal em nós, pois muitos que saqueam não tem a necessidade para tal, apenas querem se locupletar. Como nosso elenco jurídico é paternalista e leniente  isto jamais deixará de existir.

O direito do abutre


José de Souza Martins

O ESTADO DE SÃO PAULO - ALIÁS

Saques e especulação contra vítimas do desastre ambiental no Rio mostram que, ante a lei da força, a civilização vira quimera

Parece que este país se renova em suas tragédias. Alguém já disse isso mais de uma vez. Este povo, na maioria, aparentemente recolhido ao mesmismo do cotidiano, que só sai da toca nos carnavais para pôr a máscara do que não é, nas tragédias se revela de fato. Tradições antigas de pertencimento e solidariedade ganham vida nessas horas, põem-nos para fora de nossos limites e de nossas contenções. Vimos isso nesses dias da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro. Mesmo pessoas golpeadas profundamente pela dor da perda de gente muito próxima, que nem haviam enterrado seus mortos, já estavam ajudando a resgatar outros e salvar vidas.

Mas do fundo de nossas tradições vem também um dos nossos mais deploráveis traços culturais. Em primeiro lugar, sem dúvida o saque do que restava das casas das vítimas, com gente até se oferecendo como voluntária para ajudar apenas para ter a oportunidade de saquear. Maculando a generosa dedicação de outros. Ou o roubo, pura e simples, como fez aquele funcionário da Uerj que, antes de levar as doações aos destinatários na área flagelada, desviou parte da carga. Ou os oportunistas que oferecem água à venda por preços multiplicados e casas para alugar pelo dobro do preço de mercado. Se fosse crime contra o Estado, a história seria outra. Como é crime contra a sociedade, fica por isso mesmo. Até o oportunismo político de alguns deve ser situado na mesma lógica da predação contra os que foram vitimados pelos escorregamentos, enxurradas e desabamentos.

O saque surge do nada. A rapina de cargas de veículos acidentados é outra modalidade de sebaça, multidões repentinas carregando o que podem. Não se trata de ladrões profissionais. Trata-se de algo pior: da prontidão de pessoas comuns, que nunca sairiam de casa para assaltar alguém, mas o fazem simplesmente porque a oportunidade se apresenta. Isso envolve não só a prática de despojar alguém indefeso daquilo que lhe pertence, mas também a de se aproveitar de alguém em situação de desvantagem para aumentar preços e extorquir legalmente em nome da lei da oferta e da procura. Do especulador impiedoso ao saqueador, estamos em face da ação motivada pelo mesmo sistema de valores, os da lei do mais forte, em face da qual a civilização é uma quimera.

Essa prática tem entre nós raízes culturais profundas. Herdamos da Europa medieval o direito à sebaça, ao saque dos bens dos vencidos. Na história social e política brasileira temos vários episódios e ocorrências desse tipo nas chamadas lutas de famílias. O caso mais emblemático, ocorrido em Dianópolis, no norte do antigo Estado de Goiás, virou enredo de obra clássica da literatura, O Tronco, de Bernardo Élis. Também no cangaço, a sebaça se propunha como um direito do vencedor sobre o vencido. O grave, no caso do Rio, é que a vítima do desastre seja tratada por alguns como um vencido em guerra justa. Essa é a grande anomalia social.

Ainda menino, quando morava na roça, e fazia o curso primário no Grupo Escolar Pedro Taques, em Guaianases, na periferia de São Paulo, mais de uma vez vi multidões carneando nos pastos bois e vacas que haviam morrido por ingestão de ervas venenosas, o gado ervado, ou picados de cobra. Bastava que alguém visse um urubu solitário voando em círculos, bem alto, que as mulheres saíam de casa com facas e bacias em direção àquele ponto. Amontoavam-se ao redor do animal, numa pacífica divisão do trabalho, para abri-lo e cortar os pedaços do que era a única carne que comiam de vez em quando. Deixavam para as aves de rapina apenas as vísceras,por serem, diziam, as partes em que o veneno se localizava. Nunca o dono do gado se opôs a essa prática.

O saque das mercadorias de caminhões acidentados, mesmo dentro das cidades, reproduz, revigora e amplia esse direito popular e antigo. O dono perde o direito de propriedade em relação aos seus bens a partir do acidente. São muitas as evidências desse primitivismo também em relação aos mortos, como a indicar que o direito aos bens de alguém cessa quando esse alguém morre, os bens caindo em comisso como uma espécie de bem público que entra no circuito de reapropriação privada. Em outras sociedades, essas formas primitivas de direito foram banidas e superadas pelas revoluções sociais e políticas. Aqui, historicamente as coisas foram diversas. A superficialidade das mudanças sociais sempre facilitou a agregação do direito velho ao direito novo, traço profundo da nossa cultura política da conciliação. Os saques e a especulação econômica contra as vítimas sobreviventes do desastre ambiental na região serrana do Rio de Janeiro nos mostra a vitalidade entre nós do direito do abutre a se nutrir da carniça das tragédias sociais.


José de Souza Martins, Professor Emérito da Universidade de São Paulo, é autor de a Sociabilidade do Homem Simples (Contexto).

5 comentários:

  1. É Jefferson...E eu, como cidadã comum, que tenho muitas obrigações e poucos direitos por não me filiar ao "partido" ou concordar com essa ideologia retrógrada, fico com minha consciência dolorida ao ver tanta coisa acontecendo e não acreditar que minha ajuda possa chegar aos que realmente precisam. Estão acabando rapidamente com a Nação, no sentido puro da palavra, fazendo-nos divididos, "nós contra vocês", "ricos maus contra pobres bonzinhos", luta de classes programada para manipular os mais fracos de espírito.
    Leio sua blogagem e concordo..e me entristeço também com tudo.

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  2. Este sentimento de doar, é natural do ser humano. Só que a caridade muitas vezes tem de ser sofredora, caso não sofra estes danos da vida, não há valor em doar ou se dar a esta prática. Pois tudo que fizermos, sempre terá alguém para dizer: Porque fazes isto! Não desperdices! Ou ainda, tem muitas gente que rouba e saqueiam os donativos, para que dar? Então eu me pergunto! Quem esta sofrendo com estas especulações do alheio? Nós é claro, porque se olharmos para isto, nos recusamos de doar e de ajudar! Por isso é que estamos perdendo a fé nas pessoas, e não desejamos mais fazer caridade!

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  3. Sebaça...???
    Fui ao "Pai dos Burros" para dirimir..., ou pelo menos mitigar a minha ignorância a respeito...
    Nos dois primeiros (dicionários)não houve o "reconhecimento" da palavra..., no 3º. o que se segue: sebaça (se-ba-ça)


    sf Reg (Bahia) Roubo à mão armada; assalto.

    Mas, voltando ao tema propriamente dito, tenho que expor uma visão pragmática em que há que se diferenciar o furto/roubo famélico..., do resto.
    Ou seja: SE a ação não for comprovadamente de natureza famélica, há de se aplicar Lei Marcial em área de catástrofe, similar a de Tempo de Guerra. Quando for o caso de calamidade PÚBLICA. Decretar-se-a, temporariamente (48 ou 72 horas...) ou até a instalação efetiva das forças normais de segurança policial, Lei Marcial ou coisa que o valha.
    Exemplificando; O indivíduo foi FLAGRADO roubando artigo sabidamente que NÃO seja de utilidade para sobrevivência de si ou de outrem. Aplicar-se-á, em particular, nos casos de reincidência fuzilamento sumário!!!
    Parafraseando uma conhecida frase: "Quem vive para SE servir..., não serve para viver..."
    Penso que a distância entre o "politicamente correto" e a hipocrisia é tenue demais..., para o meu gosto...
    Portanto, NÃO RECONHEÇO o "direito" do abutre!!!
    Abraços.
    Hélio.

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  4. Ola Jefferson, um otimo artigo ficou evidente os interesses maldosos das pessoas frente a tragédia ocorrida no RJ, onde as pessoas se aproveitaram da fragilidade e dor das pessoas.
    Eu acompanhei diversas reportagens na mídia no qual mostravam as pessoas roubando, isso mesmo roubando bens de pessoas que já perderam tudo na tragédia.
    Infelizmente o Brasil é repleto de pessoas assim.

    Abraços.
    Daiani Furtado

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  5. Prezado colega,

    Tenho acompanhado seu blog e vejo muitas coisas da mesma forma como descreve.
    "O homem tem dominado o homem para seu próprio prejuízo" - Eclesiaste 8:9
    Logo, nos resta apenas a
    gir dentro de nosso alcance e confiar que o Criador do Universo nos guie como homens de bem a agir de acordo com seu propósito

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