Gaudêncio Torquato
O ESTADO DE SÃO PAULO
Continuar ou descontinuar? Essa tem sido recorrente questão sempre que novos governantes começam a gestão. Este jornal mostrou, na terça-feira, que a sucessão nos governos dos Estados interrompe programas, altera ênfases administrativas, impõe novos rótulos, sendo a descontinuidade a marca não apenas de opositores que ganharam o pleito, como Siqueira Campos (PSDB), que decidiu eliminar da fisionomia pública do Tocantins todos os traços do antecessor, Carlos Gaguim (PMDB), mas de correligionários, como é o caso, em São Paulo, do tucano Geraldo Alckmin, que ordenou a revisão de contratos do ex-governador José Serra. A descontinuidade, vale dizer, é um fenômeno natural do regime democrático, na medida em que ele ganha oxigênio com rodízios no comando de poder e, por conseguinte, com a adoção de abordagens diferentes nas administrações federal, estadual e municipal. A tese seria inquestionável se a descontinuidade abrigasse mudança de programas ineficazes e continuidade de ações positivas e aprovadas pelas comunidades. No caso brasileiro, porém, o verbo descontinuar significa apagar vestígios da gestão anterior e colocar em seu lugar a moldura do governo seguinte.
Se a estratégia objetiva elevar os perfis de novos governantes, e não a modernização de processos ou mesmo a calibragem de programas já existentes, a conclusão é de que, no País, a expectativa de mudança fica só na promessa. A descontinuidade administrativa, aqui entendida como retorno ao ponto de partida, adquire o paradoxal significado de continuísmo. Expliquemos: os governantes que se sucedem promovem mudanças de forma, mas não de fundo, consolidando o jogo de soma zero: o ganho de um é a perda de outro, o que o anterior faz o posterior anula. A alternância do poder não significa, nesse caso, a mudança de valores e padrões de comportamento tradicionais, a racionalização das estruturas, a criação de ações e programas voltados para a melhoria do bem-estar coletivo, a substituição de critérios políticos por parâmetros de desempenho e a distribuição mais equitativa de recursos materiais e simbólicos. Em suma, o campo das reformas clamadas pela coletividade é substituído pelo território das conveniências pessoais. A dinâmica, apontada como atributo do rodízio de poder, submete-se à estática (e estética) condizente com a glorificação dos mandatários. Ora, esse custo alto que a democracia paga acaba corroendo parcela das riquezas de uma nação.
Imaginemos, por exemplo, se a política urbana e de meio ambiente fosse uma linha contínua, sempre avançando na régua dos governos, desde os idos de 1985, quando foi criado o Ministério do Desenvolvimento Urbano e do Meio Ambiente. Veríamos, hoje, as tragédias e catástrofes que assolam a vida nacional? Pouco provável. O fato é que o esforço de coordenação das políticas urbana e ambiental, que se enxergava naquela pasta, fragmentou-se ao longo das administrações, a partir de 1989, quando suas atribuições se repartiram em quatro Ministérios. Criaram-se, desde então, diversos órgãos que se foram acomodando aos novos comandos ministeriais. A divisão de programas e espaços foi se amoldando aos interesses partidários, na esteira da complexidade que a política vem adquirindo nos últimos anos. O efeito sanfona - vai e vem - dos formatos ministeriais contribui, sobremaneira, para "a filosofia das novas soluções" que os gestores públicos expõem quando iniciam sua jornada. Nas novas planilhas, prioridades são afastadas; nomes de programas ganham rotulação criativa, atendendo aos parâmetros do Estado da fosforescência e novas ênfases são arrumadas. Como a vasta seara social é a que rende mais frutos na colheita eleitoral, é em torno dela que se processam as mais fortes ações de (des)continuidade. Programas assistencialistas, e de evidente viés populista, passam a ser a "bola da vez" em todos os recantos. Para coroar a festança os governantes, com a maior cara de pau, pegam carona no velho refrão: "É melhor ensinar a pescar que dar o peixe".
Parte da aguerrida estratégia da descontinuidade que descamba no continuísmo de métodos convoca ao palco de guerra políticos e burocratas, estes querendo avocar domínio do conhecimento técnico, aqueles erguendo a bandeira da vitória nas urnas. Mais uma vez, os efeitos são deletérios: mudança de rumos nas ações de governo, desestímulo de equipes, tensão nos ambientes, animosidade e chantagens. Diante dessa radiografia cheia de furos, a pergunta é: como atenuar os rombos do custo Brasil do desperdício decorrente da descontinuidade? Sementes de racionalidade, felizmente, começam a florescer. A começar pela defesa intransigente da ideia de que territórios que exijam intensa e insubstituível identidade técnica sejam administrados por perfis condizentes com seu escopo. Outro caminho que pode servir para contornar os obstáculos é a própria democracia participativa. Um corpo de representantes da comunidade - escolhidos no seio de entidades respeitadas da sociedade civil - poderia apontar os programas que devem ser continuados e as ações que precisam ganhar nova rota. A parceria entre União e Estados, resultando em programas integrados, também se apresenta como alternativa para evitar os estragos de desgovernos.
Não existe, porém, melhor baliza para os governantes que o bom senso. E não é difícil saber onde está o bom senso em matéria de administração pública. É só tentar descobrir o que é novo e o que é obsoleto. O que vou fazer é algo efetivamente inovador ou essa ideia é coisa desgastada?
Srs. governantes, meditem sobre a pergunta. Jorge Luis Borges escreveu: "Somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, essa pilha de espelhos rotos". Pois bem, olhem para esses espelhos. Mesmo rotos, eles poderão mostrar aos governantes de boa vontade uma aurora brilhante na administração.
JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP, CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO
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