sábado, 5 de fevereiro de 2011

A conta e o faz de conta

Rogério Furquim Werneck
O Globo

Chegou a conta da memorável farra fiscal do ano passado. As despesas não financeiras do governo central superaram em 22,4% as de 2009. Apesar do vigoroso crescimento da receita, na esteira da expansão da economia, o superávit primário do governo central, devidamente calculado, não chegou a 1,3% do PIB. Mas o governo ainda não deu sinais convincentes de que vai conter gastos. As autoridades fazendárias nem mesmo reconhecem a existência do problema. Negam que tenha havido deterioração do quadro fiscal em 2010. 

O que se vê é mais um preocupante desdobramento do descrédito em que caiu o registro das contas públicas, desde que o governo passou a adotar critérios contábeis indefensáveis para disfarçar o que vem ocorrendo com as finanças públicas. Tendo produzido estimativas completamente deturpadas dos indicadores fiscais que devem pautar a condução da política macroeconômica, o governo agora quer acreditar no faz de conta e concluir que, com base nesses indicadores, o quadro não parece requerer maiores ajustes na área fiscal. 

Tal desdobramento era perfeitamente previsível. Poderia ter sido evitado se a deturpação das contas públicas tivesse ficado encapsulada no governo anterior. Mas essa oportunidade foi perdida quando a presidente Dilma Rousseff decidiu manter Guido Mantega e sua equipe no Ministério da Fazenda. Como era de se esperar, o ministro da Fazenda agora atribui um custo proibitivo a reconhecer que os indicadores fiscais foram deturpados e deixaram de indicar o que deveriam. Para não ter de incorrer nesse custo, parece disposto a tudo. 

A escalada de irracionalidade que isso pode desencadear não deve ser subestimada. Basta ver a lamentável reação de Mantega a observações sobre o quadro fiscal brasileiro feitas num relatório recente do Fundo Monetário Internacional. "O diretor-gerente saiu de férias e algum velho ortodoxo deve ter escrito esse relatório com bobagens sobre o Brasil." 

Se há uma coisa que o FMI sabe fazer é manter registros cuidadosos da evolução das contas públicas dos países membros. O relatório do qual se queixa Mantega oferece excelente exemplo desse cuidado, ao assinalar, meticulosamente, que nas estatísticas de resultado fiscal do Brasil "não estão incluídos empréstimos ao BNDES de mais de 3% do PIB tanto em 2009 como em 2010". 

O FMI está coberto de razão quando constata que o quadro fiscal no Brasil piorou. Mas é apenas mais uma voz no imenso coro de analistas, no País e no exterior, que vêm defendendo mudanças na política fiscal, tendo em vista a deterioração das contas públicas e a necessidade de rebalancear a política macroeconômica, com alívio da sobrecarga que tem recaído sobre a política monetária, num quadro de inequívoco sobreaquecimento da economia. 

A reação destemperada do ministro não tem justificativa. Mas é apenas uma pequena amostra das dificuldades que Mantega deverá enfrentar para tentar manter as aparências e continuar a pautar a condução da política fiscal por indicadores que já não têm credibilidade. A se julgar pela experiência argentina nessa área, a perspectiva não é animadora. Os Kirchner abriram a caixa de Pandora da falsificação de índices de preços no início de 2007. Até hoje, não conseguiram fechá-la. 

Estará o governo disposto a abandonar a deturpação sistemática dos indicadores fiscais observada nos últimos dois anos? Há uma declaração do secretário do Tesouro a esse respeito, publicada no Estadão em 1/2/2011, que soa auspiciosa: "Vamos voltar ao mesmo sistema de primário que usamos em 2007 e 2008. A meta é 3,3%. Vamos mirar na meta cheia. É possível abater, mas não vamos. [Este ano] não tem isso." O problema é que tal declaração estava sendo apenas rememorada pelo jornal. Tinha sido feita ao Estadão há um ano atrás, em janeiro de 2010. Mas o secretário não se emenda. Depois de toda a lambança contábil para disfarçar o descontrole de dispêndio no ano passado, quer agora que o País acredite que o quadro fiscal melhorou. 

Com a Fazenda entregue ao faz de conta, vai ser difícil conter gastos.
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