José Nêumanne
O ESTADO DE S. PAULO
O depoimento do então secretário demissionário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério de Ciência e Tecnologia, Luiz Antônio Barreto de Castro, em audiência da Comissão Representativa do Congresso Nacional, em 20 de janeiro, é um dos documentos mais relevantes e reveladores da incúria administrativa e do cinismo político no Brasil. E da forma como esses vícios foram levados a extremos do descalabro nas gestões petistas de Luiz Inácio Lula da Silva. Infelizmente, esse testemunho não teve a repercussão merecida nos meios de comunicação nem provocou em nenhum dos Poderes da República (se é que funciona de fato aqui um sistema tripartite de governo) e na sociedade o debate que deveria ter provocado para que os absurdos por ele indicados sejam evitados.
O primeiro absurdo já havia sido noticiado antes de o técnico ter sido ouvido em vão pelos congressistas, a convite da senadora Marina Silva (PV-AC), que foi ministra do Meio Ambiente do governo em questão. Os brasileiros que não tiveram o privilégio de acompanhar esse depoimento ou mesmo a audiência já sabiam que em 2005, quando um tsunami devastou praias asiáticas, o ex-presidente Lula tinha firmado um compromisso com outros 167 países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) para instalar, ao custo de R$ 115 milhões, um sistema de radares para prevenir desastres naturais. No entanto, não foi investido nenhum centavo e os cidadãos que pagam os impostos que bancam as despesas públicas só ficaram sabendo disso quando, em 17 de janeiro, a presidente Dilma Rousseff mostrou que não é tão loquaz como o antecessor, mas aprendeu muito bem alguns de seus mais caros truques de marketing, ao anunciar um tal Sistema Nacional de Alerta e Prevenção de Desastres Naturais para o País. Seria uma piada de mau gosto se não fosse uma tragédia amarga. Pois ela anunciou para daqui a quatro anos a instalação do mesmo equipamento com cuja aquisição pelo Brasil seu antecessor e padrinho se havia comprometido em documento oficial internacional havia seis anos. A caradura do anúncio do governo foi tal que o prazo para o funcionamento, que era de dez anos, passou a ser de quatro, considerado insuficiente por quem conhece o assunto.
O depoimento do especialista no Congresso tornou-se histórico por relatar como e por que a palavra empenhada por Lula na ONU virou titica de galinha na prática. O burocrata que deixou o posto por discordar da forma como a promessa foi triturada nos trâmites da máquina pública federal revelou, antes de entregar o abacaxi com casca e tudo ao substituto nomeado, Carlos Nobre: "Há dois anos fizemos um plano de radares para entrar no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-1), não conseguimos. Fomos orientados a entrar no PAC 2, ficamos fora. E aí eu perguntei para meu ministério: E agora? O presidente disse que devíamos colocar no Plano de Ciência, Tecnologia e Inovação Governamental (PCTI), que não teria fôlego para financiar os R$ 115 milhões".
Tudo isso seria ridículo se não fosse mais doloroso. Domingo, O Globo constatou que os responsáveis pelos PACs, pelo PCTI e pelo Orçamento da União (inclusive os representantes do povo no Poder Legislativo) não encontraram meios de conseguir R$ 115 milhões para salvar vidas em 500 áreas de risco e 300 sujeitas a inundações no Brasil, mas autorizaram o pagamento de R$ 1,2 bilhão para construir ou alugar prédios suntuosos para repartições públicas. Na Região Serrana do Rio, na Grande São Paulo e em Santa Catarina, só para citar os casos mais recentes e urgentes, brasileiros morrem ao desamparo de seus representantes e mandatários, enquanto a elite funcional federal se refestela nas sedes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), da Polícia Federal (PF), do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e do Ministério da Cultura (MinC). Sem dinheiro para radares, para instalar varas federais no interior, para melhorar a saúde pública nem para construir aeroportos seguros, a União não enfrenta entrave algum para pagar contas de cerveja, chicletes de menta e bolas de futebol ou até para financiar eventos que afugentem o estresse da nata burocrática que na União Soviética era chamada de Nomenklatura. Tudo isso, porém, vira café pequeno se comparado com os desastres naturais: só a nova sede do TSE custará mais que o triplo do dinheiro que deveria ter sido, mas não foi aplicado nestes seis anos para salvar as vítimas dos temporais.
E não me venham com a conversa de que o excesso de precipitação pluviométrica pegou os maganões federais, estaduais e municipais com as barras arriadas das calças. A ONU, sempre a ONU, revelou em Genebra que, de 2000 a 2010, 7,5 milhões de brasileiros sofreram com 60 catástrofes naturais (sem contar as enchentes e os deslizamentos deste verão): 6 secas, 37 enchentes, 5 deslizamentos de terra, 5 tempestades, 1 terremoto, 3 incidentes provocados por excesso de calor e 3 epidemias.
Os leitores de Graciliano Ramos perceberão que houve seis vezes mais desastres provocados por excesso do que por falta de chuvas no País, acostumado a lamentar o flagelo da estiagem. Os observadores da cena política terão mais a aprender da frase do técnico federal em prevenção de enchentes Luiz Antônio Barreto de Castro, que resumiu exemplarmente o comportamento de Lula e seu popularíssimo governo de oito anos: "Falamos muito e não fizemos nada".
O flagelo das secas foi imerso sob a desgraça das cheias. E o país do "rouba, mas faz", ainda em plenos vigência e esplendor, ganhou agora outra dimensão trágica: é também a pátria do "fala, mas não faz". Falar menos do que Lula, Dilma já fala. Agora precisa fazer mais - muito mais do que anunciar o que foi prometido antes e nunca realizado.
Jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde
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