O ESTADO DE SÃO PAULO
De Gaulle tinha exata noção de que ao político, como ao artista, é necessário o dom, moldado pelo ofício. Cercava-se de cuidados com a expressão, ensinando: "Os maiores medem cuidadosamente as suas intervenções. Fazem delas uma arte." Tempos grandiosos aqueles em que as plateias se encantavam com a arte dos grandes mestres da palavra. As sentenças continham boas lições e o poder de mobilizar e atrair a atenção das massas.
"Não tenho nada a oferecer-vos senão sangue, sacrifício, suor e lágrimas", declamava Churchill a ingleses inebriados com o fervor que o primeiro-ministro imprimia à convocação de guerra. "Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país", proclamava o presidente John Kennedy em seu discurso de posse, elevando o orgulho norte-americano. Pouco a pouco, a névoa do tempo tornou esquecidas as mais belas páginas da História. A cortina desceu sobre os palcos do esplendor e a era dos tribunos foi fechando portas, sob o eco da locução de Nietzsche no cume do penhasco nos Alpes de Engadine: "Vejo subir a preamar do niilismo." A política apequenou-se. Os atores despiram-se dos mantos litúrgicos que os cobriam de reverência. E, assim, os mais altos ideais, torpedeados pelas emboscadas da modernidade política, foram suplantados por interesses mercantilistas.
A esfera do discurso é apenas uma das frestas que deixam transparecer o rebaixamento dos padrões da política. A degradação tem sido devastadora, destruindo mitos, corrompendo administrações, sujando reputações, maltratando doutrinas e até invadindo os espaços da privacidade. A baixeza se expande. Governantes de nações do Primeiro Mundo veem sua imagem embalada em escândalos e, pasmem, sob acusações de envolvimento em casos sexuais com menores e garotas de programa. É o que se diz do primeiro-ministro Berlusconi, da Itália. Correspondências devassadas pelo WikiLeaks mostram como as potências consideram parceiros e adversários. A uma pauta de preconceitos se somam digressões sobre o caráter (criticado) de figuras públicas. Por aqui, a corrosão também é intensa. O nosso sistema político, no fluxo da crise que fere a democracia representativa em todo o mundo, é balizado por um conjunto de elementos negativos: fragmentação partidária, desmotivação das bases, pasteurização ideológica, perda de força das Casas congressuais e supervalorização dos Executivos. Também entre nós, o campo da expressão é mostra do esburacado estado da arte política.
A cada dia a galeria de gafes ganha uma nova peça. Na semana passada foi a vez do governador Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro, que, puxando o argumento de que o dever conclama todos a pisarem na realidade, assim falou: "Quem aqui não teve uma namoradinha que teve que abortar?" Ao defender a absurda hipótese sob forte convicção - "vamos encarar a vida como ela é" -, talvez lhe tenha escapado a conclusão de que, levando ao pé da letra a peroração para cerca de 400 empresários, tirando as exceções de praxe, a conta dos abortos ultrapassaria a casa dos 300. A maneira improvisada como se pinçam dados (quase sempre chutados) para arrematar pontos de vista também faz parte do mau trato que se dá à política. Quando o comandante Cabral conclama a plateia a encarar a realidade, certamente o faz com a intenção de expurgar a camada de hipocrisia que reveste partes do corpo político. O que, convenhamos, seria positivo. Por que, então, é alvo de críticas? Ora, porque sua indagação é uma aleivosia, uma falseta, um exagero; ademais, defender a legalização do aborto sob o argumento de que sua prática é generalizada é pinçar um sofisma. Por último, a questão da hipocrisia: se há real interesse em extirpar a falsidade que cerca a vida cotidiana, o orador deve incluir outros fatores que não apenas aqueles que realçam um discurso para agradar a plateias.
Certos homens públicos esquecem que portam o dever de compartilhar ideário, rotinas e ações com a coletividade. Seu mandato não lhes pertence. É do povo. Portanto, o que pensam e o que dizem devem integrar as demandas da parte da sociedade que os elegeu. O chiste, a piada pronta, a improvisação, o jeito brincalhão de animar audiências - elementos que se imbricam ao modo brasileiro de ser - hão de ser devidamente controlados e ajustados aos momentos, sem firulas, sob pena de se transformarem em bumerangues contra os porta-vozes. Foi assim com o próprio Lula, que, em momento de descontração, cometeu algumas apelações. Com Maluf, que nunca se livrou do indefectível "estupra, mas não mata". Com Marta Suplicy, que, ministra do Turismo, não se conteve e, ante o caos aéreo, saiu-se com o "relaxa e goza". Ou o incontrolável Ciro Gomes, recordista de frases de péssimo gosto. Exemplo: "Fortaleza é um prostíbulo a céu aberto" (criticando a administração petista em 2008). Aliás, a dúvida persiste: ministro do governo Dilma, terá controle para dobrar a língua?
É sabido que entre a arte (dramática ou política) e o artifício existem relações. Os políticos, como os atores teatrais, exercem papéis. Explica-se, assim, como a teatralização da vida pública gera simulação, mentiras ou falsas versões. Sob o abrigo da representação, os atores políticos desempenham também roteiros. Alguns tentam fazê-lo de maneira decente, inspirando-se no ideário original da política, que é o de bem servir à comunidade; outros exageram na interpretação do papel, fazendo uma figuração artificial e distante das expectativas de suas bases. E, por fim, existem os figurantes que, a pretexto de defender a verdade, a sinceridade, a expressão do coração, acabam cometendo tolices. A política incorpora uma liturgia própria, com ritos, costumes, semântica e estética. Seus integrantes precisam seguir à risca ditames, valores e princípios que a inspiram. Sem fazer dela um teatro de ilusão. Ou palco para representação de sua ópera-bufa.
JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP, CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO
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