Outro dia eu comentei aqui o curioso resultado de uma pesquisa sobre corrupção. Não passam de uma dúzia os cidadãos que se confessam corruptos. Mas a imensa maioria opina que a imensa maioria é corrupta. Ou seja, eu não sou corrupto, mas os outros são.
Hoje, querendo falar sobre politização, me dei conta de que a situação é mais ou menos a mesma. Todos nos achamos politizados, mas os brasileiros [os outros] não são. Isto é que atrapalha.
Nem cheguei à quinta linha e vejo que vocês, meus caros leitores, já estão em pé de guerra comigo. Querem decidir logo a parada com o veredicto de que brasileiro não tem mesmo jeito. “ ‘Tudo’ ignorante, resignado, preguiçoso. Democracia com um povo desses, quando?” Peço-lhes paciência.
O discurso do cidadão “politizado” é mais ou menos assim : (1)o Estado não faz nada, é corrupto, não cuida da saúde e da educação, não consegue controlar a violência etc; (2)os governos e os políticos só sabem aumentar impostos e roubar ; (3) falta patriotismo, falta ética, faltam verdadeiros líderes ; (4)onde estão os caras-pintadas? Também sumiram?
É verdade ou não é? Até aqui, está igualzinho à pesquisa da corrupção. Eu estou aqui protestando, esperneando, querendo ir para a rua, mas cadê os outros?
Mas o discurso de repente muda. Vira auto-flagelação. Prossegue assim: “…e nós, você e eu, fazemos o que? Nada, somos passivos, não reagimos. Brasileiro é assim : somos uns bundões. Temos sangue de barata. Somos egoístas, só pensamos em nós!”
Meu caríssimo leitor, volto a lhe pedir calma. Eu não estou dizendo que está tudo bem, que o governo presta serviços esplêndidos etc. Nada disso. Concordo com você, razão para pessimismo é o que não falta. Mas veja bem, a realidade de um país, qualquer um, é caleidoscópica, depende de como se olha. Mesmo aqui, com esforço a gente acaba encontrando razões para algum otimismo.
O que eu digo é que dá para discutir o assunto da politização de maneira um pouco mais organizada. Dá e é importante que o façamos. Vamos lá.
Para começar, eu proponho a seguinte reflexão: somos um país de Pigmaliões políticos. Você se lembra do Pigmalião? É aquele personagem que buscava a mulher perfeita e, não a encontrando, descartava todas as outras. My Fair Lady é a versão mais conhecida da história.
Pois então: o Brasil é um país pobre, desigual, injusto? Rejeitemo-lo. Falemos mal dele. Quem puder, vá embora. Muito bem, e isso resolveu o quê? Nada.
Nossa democracia é ruim, inautêntica, imperfeita? Pois descartemo-la! Ah é? Nós quem, cara pálida? Vou te lembrar o que Churchill disse num famoso discurso de 1947: a democracia é de fato o pior regime, salvo por todos os outros. Ah, com isso você concorda? Ótimo, antes isso. Assim o nosso trabalho passa a ter um foco preciso: compreender como as democracias se formam ao longo da história, como se sustentam, o que podemos fazer para aprimorá-las. É bastante trabalho, mas ter um roteiro já é meio caminho andado.
Outro dia, numa discussão semelhante a esta, o meu amigo Marcelo Lacombe, professor da UnB, fez a seguinte observação: “o regime democrático será sempre cheio de contradições; democracia é isto, a coexistência de contrários. [No Brasil], vamos ficar sempre desvalorizando a democracia por causa das seqüelas do regime militar que a precedeu? Quantos outros países passaram por regimes autoritários no mundo e se tornaram plenamente democráticos depois – já fizeste a conta? Nossos partidos estão indo muito mal, OK, então por isto devemos acabar com a democracia? Que debate é esse que a toda hora alguém propõe? Não faz o menor sentido”.
Eu assino em baixo do Marcelo: não faz mesmo.
Para concluir, me permitam dizer que não sou apreciador dessa palavra – “politização”. Ela costuma ser usada em dois sentidos, ambos ruins.
No primeiro, ela serve para designar uma indignação genérica, sem objeto definido: contra a “injustiça”, a “corrupção” ou a “desigualdade”, por exemplo. Que tal discutir o que torna injusta uma situação ou regra específica? Uma transgressão específica de um preceito legal vigente? Um jeito viável de tornar menos desiguais certas remunerações, ou as oportunidades educacionais?
No segundo sentido, politização se confunde com excitação, ativismo, agressividade e por aí afora. Um pouco mais e vira “assembleísmo”, “movimentismo”, “grevismo” – ou seja, uma crença idiota na ação direta como parteira de um mundo melhor.
Me entendam, eu não estou propondo descartar o conceito de politização – nem vejo como isso poderia ocorrer. Mas prefiro entendê-lo como uma capacidade individual de identificar alternativas quanto a problemas de genuíno interesse público, de buscar e assimilar informações sobre tais alternativas de modo a formar uma avaliação própria, e aí, sim, se for o caso, participar de atividades racionalmente adequadas à busca de soluções.
Creio que a partir deste ponto fica mais fácil discutirmos o tema que levantei no início: o da autoflagelação. E como substituí-la por um sentimento realista de participação.
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