Sergio Leo
Valor Econômico
Alguém aí se lembra de Honduras? No país onde o populista Manuel Zelaya foi derrubado por um golpe militar em 2009, os conflitos armados entre camponeses e fazendeiros são classificados pelo presidente Porfírio Lobo de assunto de "segurança nacional", a inadimplência ameaça de falência a estatal de energia, empresários cobram do governo acordo com o FMI para deter a sangria fiscal e, num indício da situação dos direitos humanos por lá, 21 jornalistas foram assassinados desde 2010. Esses fatos não indicam que o país estaria melhor com Zelaya. Só atestam que política externa nas Américas não é escolha fácil, entre mocinhos e bandidos.
É difícil à diplomacia escancarar as razões de algumas ações com outros países, que só têm efeito se realizadas discretamente. Isso deixa qualquer governo carente de argumentos para responder a certas críticas à política externa - especialmente quando a discussão se dá em torno de temas polêmicos, como, por exemplo, a recente decisão de incorporar definitivamente a Venezuela como sócio pleno do Mercosul.
Com a chegada do presidente venezuelano Hugo Chávez ao Brasil, para a cerimônia que sacramentará nesta terça-feira a incorporação da Venezuela ao bloco, é conveniente deixar de lado os maniqueísmos. É preciso avaliar iniciativas como uma missão diplomática enviada a Caracas, na semana passada, sustentada por argumentos públicos e outros nem tanto, que tentam justificar a pressa no casamento com o país de Chávez.
Brasil quer pressa nas definições dos venezuelanos
O governo, aliás, não aceita chamar de pressa a decisão; o acordo entre Mercosul e Venezuela foi assinado em 2006. Mas a oficialização da Venezuela como integrante pleno dependia de aprovação do Senado paraguaio e foi decidida de surpresa, com argumentos jurídicos questionáveis, por Brasil, Uruguai e Argentina - após suspenderem o Paraguai, por considerar o impeachment do então presidente Fernando Lugo uma ruptura da ordem democrática no país.
Alguns desafios criados com essa decisão já foram negociados desde 2007, como o futuro dos acordos já firmados entre o Mercosul e outros países, especialmente Israel, com quem Chávez rompeu relações diplomáticas em 2009 após ataques israelenses à faixa de Gaza. A Venezuela negociará individualmente com cada sócio do Mercosul sua forma de participar dos raros acordos de livre comércio já assinados - com Israel, Egito e Palestina.
A missão de alto nível enviada pelo Brasil a Caracas na semana passada, chefiada pelo ministro interino do Desenvolvimento, Alessandro Teixeira, o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia, e o subsecretário-geral do Itamaraty para América do Sul, Antônio Simões, teve a função explícita de sinalizar a importância da incorporação do novo sócio, às burocracias da Venezuela e dos países do Mercosul. Implicitamente, foi uma pressão sobre Chávez, para que apresse as medidas necessárias à integração, de fato, da Venezuela.
Pelo protocolo de adesão assinado em 2006, a Venezuela terá quatro anos para fazer o que o Brasil considera um dos principais ganhos econômicos com o novo associado: adotar a tarifa externa comum (que funciona como barreira a produtos de terceiros países, como os EUA). O mesmo prazo é concedido para que a Venezuela passe a classificar seus produtos de acordo com a nomenclatura técnica do Mercosul, e não da Comunidade Andina, como é hoje; passo necessário para administrar o comércio exterior com o país.
Na presidência temporária do Mercosul até dezembro, o Brasil tem pressa, e gostaria de chegar ao fim do ano com definições mais claras dos compromissos da Venezuela no bloco. O Mercosul já tem um acordo de livre comércio com a Venezuela, pelo qual praticamente todos os produtos -à exceção de uma lista de mercadorias "sensíveis" - estariam livre de tarifas até 2013. O maior interesse é ganhar vantagens contra competidores como China e EUA, grandes fornecedores de um país que importa boa parte dos bens que consome.
Chávez recebeu calorosamente os brasileiros e, à saída, mostrando disposição apesar do recente tratamento contra o câncer, discursou por quase hora e meia para a imprensa. "Queremos acelerar para recuperar o tempo perdido", garantiu. Para acalmar produtores locais que temem os exportadores do Mercosul, disse que o bloco se tornará comprador de cerca de 230 produtos agroindustriais venezuelanos.
Na segunda quinzena de agosto, será reativado o grupo técnico encarregado das medidas de incorporação da Venezuela para decisões em quatro grandes temas: a adaptação da nomenclatura aduaneira na Venezuela, a convergência das tarifas de importação para os níveis da TEC, a liberalização do comércio intra-bloco e o modo como será incorporado o acervo de normas do Mercosul.
Ainda que a dependência do país em relação ao petróleo prometa problemas, como eventuais barreiras nas alfândegas e maior resistência a acordos de livre comércio do tipo negociado com a União Europeia, as autoridades devem ser tagarelas em Brasília sobre as potenciais vantagens econômicas da entrada da Venezuela. Menos ou nada comentada será a expectativa da diplomacia brasileira de exercer uma influência "benigna" no conturbado ambiente político do país.
O ex-presidente Lula, em filme gravado para a campanha de reeleição de Chávez, não escondeu que vê no venezuelano uma peça fundamental na conquista de poder pelas esquerdas do continente. No governo anterior, Lula foi visto pela diplomacia dos Estados Unidos como fator de contenção dos arroubos não-democráticos dos vizinhos, inclusive o venezuelano; e o governo brasileiro, em conversas reservadas das autoridades, revela a ambição de usar os instrumentos do Mercosul para garantir moderação de Chávez.
É um argumento a ser levado em conta. O Mercosul como elemento de democratização da Venezuela pode se mostrar um feito memorável. Desde que não se revele mera fantasia.
Sergio Leo é repórter especial. Escreve às segundas-feiras.
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