Valor Econômico
A fortuna é sempre arredia à vontade dos homens, mesmo quando virtuosos e diligentes, que não têm como antecipar o resultado de suas ações. Alexandre, o rei dos macedônios, quando se lançou à conquista do Oriente estava animado por vários objetivos, entre os quais o de livrar a Hélade da ameaça iminente de ser submetida ao império persa. Sustentam alguns dos seus biógrafos que, além dessa motivação de natureza estratégica, Alexandre se julgava um descendente do mítico guerreiro Aquiles, com cujos feitos teria a pretensão de se ombrear. Outros, levando em conta que o jovem rei fora discípulo de Aristóteles, incluem entre seus objetivos motivos filosóficos como o de promover a razão à instância ordenadora do mundo. Mas decididamente não estava em seus cálculos que, ao estabelecer a comunicação entre a cultura filosófica dos helenos com a dos mistérios místicos do Oriente, estava plantando as sementes que, trezentos anos depois, como argumenta a sempre clássica obra de Johann G. Droysen sobre Alexandre, desabrochariam na revolução do cristianismo.
As complexas sociedades modernas obedecem a outras lógicas, articulando vários sistemas dotados de movimentos próprios, em que, sob certas circunstâncias, como anota um grande pensador, os "protagonistas são como que os fatos", obscurecendo o papel do ator na tentativa de condução das coisas do mundo. No capitalismo, uma das fortes expressões desse fenômeno estaria no processo de criação e reprodução do valor, tal como Marx o estudou, que se alimentaria, em escala continuamente ampliada, da sua base anterior. A emissão do bordão que tornou mundialmente conhecido o publicitário americano James Carville - é a economia, estúpido! - não fosse a sua vulgaridade, poderia perfeitamente ter sido de sua autoria.
O protagonismo dos fatos, diante de um ator que aparenta estar impotente diante deles, bem poderia servir de caracterização para a atual cena internacional. A ciranda financeira, com seus trilhões de dólares circulando pelo mundo virtual à procura da aplicação mais rentável, aparenta agir de "motu proprio", destruindo economias nacionais e concedendo a outras oportunidades imprevistas. Assim, o Brasil que, desde os anos 1930, se acostumou a projetar seu futuro pelo caminho da industrialização, tem, hoje, no agronegócio, graças às peripécias do fluxo cego das mercadorias, um dos seus principais trunfos para atuar no mercado internacional, principalmente com a poderosa China. Tal mudança, de larga envergadura, inclusive no que se refere à disposição das classes sociais e grupos de interesses no país, não fazia parte das cogitações estratégicas dos tomadores de decisão há pouco tempo atrás.
O tsumani de 2008 - não por acaso o noticiário econômico tomou de empréstimo essa categoria da esfera das catástrofes naturais para nomear a crise financeira daquele ano - mais do que desorganizar a economia mundial, vem pondo em xeque a hegemonia americana, a essa altura já desafiada pela crescente expansão da economia e da diplomacia chinesa no Oriente, na África e na América Latina. No Brasil, a China ter-se-ia tornado tanto no maior mercado para os seus produtos, quanto um dos seus maiores investidores. Além disso, significou um duro golpe no neoliberalismo e suas crenças em uma feliz auto-regulação do mercado, fazendo ressurgir a ideologia, tão cara aos anos 1960, de um capitalismo organizado.
A crise, como tantas vezes analisado, se não poupou os países emergentes, os atingiu em escala bem menos severa, estimulando o experimentalismo e a inovação, que, no caso brasileiro, importou na adoção de políticas anticíclicas de corte keynesiano. Com essa nova conjunção dos fatos no mundo, abriu-se, então, a oportunidade para a retomada de um antigo repertório, o do nacional-desenvolvimentismo de JK e do regime militar, em particular o do governo Geisel.
Para a sua volta triunfante, na verdade, precisava-se de pouco: estavam ao alcance da mão os seus principais instrumentos, como uma tecnocracia estatal de quadros qualificados, as poderosas empresas estatais, encimadas pela Petrobras, um sistema financeiro bem regulado e sob competente vigilância do Banco Central, os bancos estatais, sobretudo o BNDES, que, com o estímulo do governo, transformou-se em um dos maiores bancos de fomento do mundo.
Desde então, a política se converte em um instrumento consciente de consolidação e aprofundamento do capitalismo brasileiro, e deve ser por isso que os analistas japoneses da agência Nomura Securities, ao lado de outras considerações sobre o que deverá ser a economia sob o governo de Dilma, tais como o combate aos juros altos por mais oferta de créditos e medidas administrativas, estimam que o modelo de crescimento econômico chinês estaria em vias de se impor entre nós.
Quem sabe - logo se vai poder perguntar -, a inteligência brasileira teria seguido pistas equívocas ao perseguir os caminhos abertos pelo Ocidente, que não teríamos como reiterar? Por que não olhar para China com sua milenar burocracia treinada no sistema do mérito, para a harmonia cordata que prevalece em sua complexa estrutura social e seus espantosos índices de desenvolvimento econômico? Não seria para essa direção que a época nos tange desde os acontecimentos catastróficos de 2008?
Um reputado sociólogo, há algum tempo, em um exercício meramente conceitual sobre categorias presentes na sociologia da religião de Max Weber, avizinhou o homem cordial, personagem típico do iberismo, construção teórica de Sergio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil", ao tipo de homem recortado pelo padrão confuciano. Vale, agora, torcer para que esse experimento abstrato não escape de uma situação de laboratório, com o risco de ser arrostado pelos últimos balanços das ondas do tsumani de 2008, e assim nos levando de roldão do extremo Ocidente, lugar que os heróis da nossa história escolheram para nós, ao mais remoto Oriente, onde perderíamos o caminho de casa.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras
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