FOLHA DE SÃO PAULO
Ruth, Rosani e Zilda estão rodeadas das estrelas de nossa bandeira, mirando desde cima sua obra
Não existe brasileiro que não se arrepie até a espinha ao ouvir nosso hino; esse arrepio talvez seja o derradeiro teste de brasilidade.
A bandeira brasileira é a única que retrata de maneira literal o céu do país, o que reflete o hábito de olharmos muito para cima. A alta desigualdade brasileira é, por sua vez, sinal de que olhamos pouco as pessoas ao nosso lado. Ela reflete -por preferência revelada- nossa incapacidade de enxergar as distâncias estelares entre brasileiros.
O estudo da desigualdade mede a distância transversal entre pessoas.
Projetando para cima e para o alto, é similar à medição da distância entre as estrelas.
O estudo da desigualdade é como o dos corpos celestes, a Pnad é o anteparo recebendo e difundindo a luz vinda do solo brasileiro um ano depois. Ela permite aos observadores de gente mirar em atmosfera razoavelmente límpida e captar os movimentos dentro da nossa sociedade no ano que passou.
Nenhum país do mundo pode reduzir a pobreza através de redistribuição como o Brasil. A nossa desigualdade, isto é, o resumo das distâncias entre brasileiros, continua alta, mas não mais como que deitada em berço esplêndido, segue queda invicta há dez anos, reduzindo em 44,4% a miséria.
A maior oportunidade de transformar a realidade brasileira está no altruísmo feminino. A decomposição da taxa de fecundidade -leia-se número de filhos por mulher- em número de filhos por mãe e taxa de maternidade mostra isso.
Quanto mais as mulheres adultas de uma dada localidade são mães, maiores são a frequência e o aproveitamento escolares e menor é a mortalidade infantil. As cidades líderes no IDH, como Santos, Niterói e São Caetano do Sul, lideram também a taxa de maternidade.
Muitos filhos por mãe fazem mal aos indicadores sociais, mas muitas mães entre mulheres adultas não.
Mães são o coração da célula básica do capital social, a família. A estrutura de incentivos e de protagonismo materno em programas sociais de última geração, como o Bolsa Família, explora isso. Em mais de 90% dos casos, as mães são receptoras e difusoras dos recursos do Bolsa Família. O maior obstáculo à revolução social está na baixa educação dessas protagonistas. A boa notícia é que a educação delas passou a deles.
Cuidar da primeira infância, instinto das mães, é a prioridade do país pois:
1) a taxa de miséria é maior nas crianças: 27,5% nas de 0 a 9 anos de idade ante 4,06% daqueles com mais de 60 anos. As crianças têm perdido terreno: a miséria era 79% maior para elas em 1992 e 420% para os idosos. O mesmo vale para uma miríade de indicadores.
2) quem recebe investimentos sociais mais cedo na vida tem mais tempo para colher seus frutos, alongando horizontes. É preciso sair da armadilha curativa e saltar à ação preventiva.
3) os retornos em termos de ganho de capacidades cognitivas e não cognitivas das crianças determinam as capacidades de aprendizado, de trabalho e de bem-estar futuro delas quando adultas. Infância é janela de oportunidade maior do que em qualquer outra fase da vida. O investimento com maior retorno social é nas crianças.
O derradeiro avanço social exige tipo especial de altruísmo, aprendido durante a gravidez e as dores do parto. O amor maternal é capaz de dirimir diferenças geracionais e alavancar oportunidades.
Ruth Cardoso, Rosani Cunha e Zilda Arns, mortas há pouco, perceberam isso há muito tempo. Elas são mães de vastas plataformas de transformação social baseadas nesse amor. Hoje, Ruth, Rosani e Zilda estão rodeadas das estrelas retratadas em nossa bandeira, contemplando desde cima sua obra conjunta -a menor distância entre os filhos deste solo.
MARCELO NERI, 47, é economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, na FGV.
O HINO NACIONAL entoa: "Se o penhor dessa igualdade conseguimos conquistar com braço forte". Igualdade esta relacionada à afirmação da nação pós-Independência, e não às desigualdades internas. A estrofe continua: "Em teu seio, ó liberdade, desafia o nosso peito a própria morte". E por aí vai.
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