O Estado de S.Paulo - 03/12/10
No avião, em minha última viagem literária do ano, encontrei Pasquale Cipro Neto e Moacyr Scliar. Porém, Scliar (que tem um nome muito complicado de dizer, é preciso soletrar, como confessou à Veja a atriz Iris Valverde) não ia para o Salão e sim para o 1.º Seminário de Literatura do Sesc. No fim de minha conversa no Café das Letras encontrei-me com Rogério Salgado, que escreveu mais de cem títulos de cordel e mantém em Minas o Belô Poético. Rogério ali estava para o Encontro de Autores Paraibanos, coordenado pela União Brasileira de Escritores. Em uma mesma semana, a cidade conviveu com livros e autores os mais diferentes. O que reforça a afirmação que faço sempre: coisas mudam, fala-se e muito de livros, secretarias estaduais de Educação e Cultura agem.
Por um dia, perdi a conversa de Affonso Romano de Sant"Anna. Antes de mim, no mesmo palco do Teatro de Arena, estiveram Nélida Piñon, que, mesmo gripada, febril e quase afônica, falou e respondeu às perguntas, profissional e apaixonadamente. Também foram ouvidos Mario Prata, Silvério Pessoa, Hildebrando Barbosa Filho e Sérgio Castro Pinto, mediados pelo Linaldo Guedes. Quando o mediador desaparece, é porque mediou bem. Sua voz é a de comando, ligação com o público, ele tem a função de não deixar a peteca cair. Por João Pessoa passaram (e passearam, a cidade é encantadora, brisas suaves nos levam a esquecer o abafamento) Marina Colasanti, Fabrício Carpinejar, Arnaldo Antunes, Arquidy Picado, Braulio Tavares, Ferréz, Tania Zagury, André Vianco, Jairo Rangel. Ocorreram oficinas, contações de histórias, shows, filmes paraibanos, exposições, saraus, autógrafos, debates. Tudo num espaço cultural dos mais bem equipados que já vi no Brasil, que homenageia José Lins do Rego.
Quando entrei no 1.º Salão Internacional do Livro da Paraíba, em João Pessoa, Lana Machado, organizadora do Café com Letras, me entregou o envelope deixado pelo Mario Prata. Quando alguma coisa vem do Prata, há brincadeira no meio, afinal, convivemos há 40 anos. Era a Coquetel, revista de palavras cruzadas, da série "difícil". Percorri atento até chegar às cruzadas das páginas 26 e 27. O enunciado pedia: Fundador da Companhia de Jesus com 22 letras. Corri à resposta e ali está: Ignácio de Loyola Brandão. Dessa maneira, morri há 454 anos em Roma e há uma igreja em minha homenagem próximo à Via Del Corso. Quem for lá, aproveite, existe um bom restaurante em frente com mesas fuori, como dizem. Outro muito bom, vizinho, é o Il Falcheto, onde Araujo Neto, decano dos correspondentes brasileiros na Itália, comia quase todos os dias.
Na manhã de sábado, quando caminhava pela orla em Tambaú, percebi que me olhavam com estranheza. Estariam me reconhecendo na praia, debaixo daquele sol abrasante (que clichê!)? Até garis, motoristas de bugs e vendedores de água de coco? Então me dei conta da insólita figura que eu exibia. Como a viagem era bate e volta, não levei bermuda, maiô ou havaianas. Ao terminar o café, saí como estava. Calça branca, camiseta preta, sapatos e meia. Paulistano a toda prova. Faltava só o guarda-chuva. Eu não podia perder a manhã esplêndida, dentro de duas horas tomaria o avião de volta. Assim, caminhei como estava.
Agora, iniciei minhas férias de bienais, feiras, seminários, salões até o ano que vem. Os escritores, que nunca se encontram em suas cidades, sentam-se a falar, beber e comer pelo Brasil afora. Essa a grande marca da literatura e da vida literária nestes tempos. Como jamais aconteceu em toda a história, autores têm atravessado o País, conversado, debatido, trocado ideias e farpas, rido muito e lamentado, principalmente quando verificamos que sutilmente a censura se insinua de novo entre nós.
Na manhã do sábado, entrei no Mercado Público de Tambaú. Mercados são um dos lugares em que sentimos a cidade, o povo, vemos a alma e o coração. Em volta, os flanelinhas vestindo uma camiseta: Consultor de Estacionamento. Criatividade. Passei por dezenas de pessoas debulhando ervilhas em bacias, coisa bem do meu interior. Dentro me vi sufocado pelo perfume das frutas em pilhas orgiásticas: mangas, pinhas, gordas graviolas, abacaxis sumarentos, laranjas, bananas de várias qualidades, maçãs, melancias, acerolas, cajás amarelos (pena, era cedo para uma cajarosca), uvas, goiabas, coco-verde e maduro. Falar nisso, em Tambaú bebi a água de coco mais barata do Brasil, R$ 1,00.
Na Adega do Alfredo, junto ao Hotel Royal, almocei um risoto de carne-seca molhadinho, apetitoso, uma lisonja ao paladar, como disse um vizinho de mesa, perfeito nordestino. Pena, sendo um dos points da cidade, não consegui jantar ali. Lotado, a espera é de horas. Cheguei às 11 da noite, só me sentaria pela 1 da manhã, ninguém tem pressa por aqueles lados. Sabem viver. Paulistanamente desisti. Como é duro ser paulista. No café da manhã, meu olhar guloso tentou se decidir entre farofa de cuscuz, galinha guisada, inhame, ovos mexidos, bolo de milho, bolo baieta, cuca e pão de açúcar. Daquele restaurante fiquei com a imagem de oito mulheres que, no dia anterior, tinham chegado - segundo me contaram - por volta das 14 horas. Somente se levantam da mesa pelas 20 ou 21 horas. Todas as sexta-feiras ocupam a mesma mesa, comendo, bebendo, conversando, colocando em dia os assuntos da semana, contempladas por fotografias dos antepassados do dono do hotel, fotos do século 19 e inícios do 20, mulheres a rigor, com estolas de pele, homens sóbrios, todos elegantes, velando e zelando pela comida que ali é voluptuosa.
Na volta, da rodovia para o aeroporto, uma surpresa, lição de civilidade. O trânsito para pedestres atravessarem a faixa. Botou o pé na faixa - numa rodovia, gente! -, os carros freiam. No aeroporto novo, uma surpresa, um bom lugar para se comer é o Sabor da Terra. Quem viaja sabe que comida de aeroporto é pior do que o desconforto dos aviões que nos amassam e afligem.
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