(Caderno Especial)
Entrevistas: Andre Singer, doutor em Ciência Política e
Chico Oliveira, sociólogo aposentado da USP
Intelectuais emergentes do PT fazem avaliações divergentes sobre o saldo político dos oito anos de governo de Luiz Inácio Lula da Silva
Malu Delgado e Alberto Bombig
Luiz Inácio Lula da Silva despede-se do poder com um catálogo de aliados e críticos, inclusive dentro do próprio PT. Em janeiro de 2003, quando subiu a rampa do Palácio do Planalto para passar à história como o primeiro presidente operário do Brasil, o cientista político André Singer e o sociólogo Chico de Oliveira integravam o staff de intelectuais de esquerda ligados ao PT que ao longo de duas décadas ajudaram a formular as bases e os programas do partido.
Singer, que hoje dedica-se a entender as "razões sociais e ideológicas do Lulismo", seria nomeado porta-voz da Presidência logo em seguida e permaneceria no cargo durante todo o primeiro mandato, desligando-se do governo em 2007 para retomar as atividades acadêmicas.
Oliveira, em outro extremo, romperia com partido que ajudara a fundar quatro meses depois, decepcionado com os rumos do governo. Agora, ao término da Era Lula, ambos fazem ao Estado um balanço, antagônico no conteúdo, do que ficará para a História da passagem do ex-metalúrgico pelo poder.
Para Oliveira, sempre calcado nos ditames do pensamento de esquerda, Lula teve desempenho mediano e não deixará um legado aos trabalhadores brasileiros. Singer, embasado na análise sobre a atração que Lula exerceu às classes menos favorecidas, destaca a incorporação social como sua principal herança.
Andre Singer: ‘Lula deu provas expressivas de apego à democracia’
A vinculação do "subproletariado" a Lula, que o sr. classifica de "lulismo", justificaria, por si só, a alta popularidade em 8 anos?
Não. São dois fenômenos ligados, mas diferentes. De um lado tem essa mudança de base social, que tem a ver com esse processo de realinhamento que começa em 2002 e se completa em 2006 e é caracterizado por essa mudança de perfil da base eleitoral de Lula e do PT: antes muito ligado à classe média e, agora, ao subproletariado (a faixa da população com renda familiar mensal de até dois salários mínimos). A outra coisa é que no segundo mandato os índices de popularidade subiram muito e, evidentemente que quando chegam à proporção a que chegaram atingiram muito mais gente que o subproletariado. O que é característico desse período é o fato de que a candidatura Dilma foi sustentada exatamente por esses eleitores subproletários. A alta popularidade tem, de um lado, essa base fiel que se expressou na votação da Dilma, acrescida de um público de classe média que provavelmente decorre de um grande êxito econômico do governo. O governo conseguiu produzir uma situação de crescimento que parece ser sustentável.
No seu ensaio sobre as raízes sociológicas do lulismo, o sr. menciona que o suporte do subproletariado deu "autonomia bonapartista" a Lula. O presidente foi estadista? Foi democrático?
O bonapartismo tem associação com componentes militares, o que definitivamente não está em questão. Quando eu disse que há uma certa autonomia, é de fato o resultado de uma base social que se articulou a partir do projeto executado no primeiro mandato de maneira que lembra uma passagem do Marx no O 18 Brumário, aquela em que ele diz que no caso da França os camponeses não podiam se auto-organizar enquanto classe. Eles tinham de ser organizados de cima para baixo, por identificação com quem estava no alto. Tem algum grau de semelhança com a situação dos subproletários no Brasil. Quando eu lancei a hipótese de que haveria por parte desse setor uma identificação com o projeto do presidente Lula, eu estava querendo dizer que essa camada se articulou, virou um ator político. É nesse sentido que foi feita a comparação com O 18 Brumário. Eu diria que o presidente deu provas expressivas de apego à democracia, e a maior delas é não ter patrocinado uma emenda em favor do terceiro mandato. Ele poderia ter feito, teria condições políticas para isso. Fez uma opção a favor da alternância do poder.
Um dos aspectos do populismo clássico é a identidade do líder com as massas, sem intermediários - característica de Lula. O presidente resvalou para o populismo em seu governo?
Lentamente, o lulismo está caminhando para o PT. Isso faz com que esse traço de ligação direta não esteja ocorrendo porque há fortalecimento de um partido político. Talvez o que exista é uma certa continuidade entre o lulismo e o getulismo, continuidade que não pode ser tomada fora do seu contexto. Estaria ligada ao fato de que tal como Getúlio Lula também parece estar incorporando setores que historicamente estavam fora do arranjo social principal, estavam à margem. Embora haja tantas diferenças entre a situação dos anos 50 e a atual, certa gramática política parece que voltou. Não temos elementos suficientes para falar em populismo.
A semelhança entre Vargas e Lula estaria na incorporação de classes excluídas ou há semelhanças entre os dois?
As semelhanças maiores teriam relação com essa incorporação e com o grau de autonomia que esse elemento de incorporação tenha dado a um e a outro. Essa autonomia leva a um componente importante que é a capacidade do presidente de arbitrar o conflito entre as classes.
O presidente Lula soube arbitrar conflitos de classe?
Sem dúvida. Foi um dos traços dos dois mandatos. Ele teve êxito nessa operação delicada. Um bom exemplo é perceber como dentro do governo há o agronegócio e setores que pressionam pela reforma agrária.
O sr. fala da incorporação de duas almas contraditórias ao PT (incorporação ao capital e inclusão social). Essa divisão está na cabeça de Lula?
A impressão que tenho é que ele opera por sínteses. O governo abriu espaço às duas almas.
Qual é o maior legado de Lula?
A incorporação, a inclusão social. O Brasil sempre operou por uma modalidade de permanência das elites com alta dose de exclusão. Esses oito anos abriram a porta, deram os passos iniciais para essa inclusão. Os exemplos são múltiplos, e vão desde o Bolsa-Família até a geração de empregos, passando pelo aumento do salário mínimo, crédito consignado.
Ao deixar o governo como "pai dos pobres", Lula incitou a divisão de classes no País?
Não incita divisão. Se a gente for fazer um balanço, vai prevalecer essa decisão de não promover a radicalização política. A política do governo não é radical, não incita a divisão. Embora não incite, essa divisão é real. O Brasil é um país muito desigual e foi de fato feita uma política em que favoreceu um setor da sociedade que estava historicamente fora. Esse movimento de inclusão social está produzindo uma certa polarização, que é sociopolítica. Até aqui essa polarização não tem dado sinais de ameaças à democracia. Enquanto isso estiver dentro dos marcos democráticos, não é necessariamente negativo. Há uma polarização com bases sociais. Os atores políticos e o presidente, em particular, não estão incitando uma polarização.
O sr. vê mudanças entre o primeiro e o segundo mandato?
Vejo. Houve uma certa inflexão "desenvolvimentista" no segundo mandato, inflexão à esquerda no sentido de flexibilizar o gasto público.
A crise do mensalão poderia ter custado a reeleição se Lula não tivesse apoio popular?
Poderia. O episódio marcou o afastamento de uma base eleitoral de classe média. Se em lugar de ter esse movimento de novas adesões ao presidente na base da sociedade em 2006 tivesse havido movimento de espraiamento da rejeição, diria que teria marcado um outro destino.
Andre Singer
É doutor em Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), jornalista, ex-porta-voz (de 2003 a 2007) e ex-secretário de Imprensa (no período de 2005 a 2007) da Presidência da República do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Chico Oliveira: ‘O presidente esteve à beira de se tornar um autoritário’
Qual leitura o sr. faz dos oito anos do presidente Lula?
O balanço geral é mediano. Essa história de "nunca antes neste país" é conversa fiada. O Brasil foi a segunda economia mundial a crescer sustentadamente durante um século. Mas foi um crescimento feito sem nenhuma distribuição de renda. A gestão do presidente Lula não diminuiu desigualdade nenhuma, isso é lenda criada a partir de muita propaganda. O que houve foi uma transferência de renda a partir do governo para os estratos mais pobres. Distribuição ocorre quando existe a mudança da renda de uma classe social para outra. Nesse sentido, não houve nenhum avanço.
O sr. concorda com os que afirmam que Lula é um mito?
Sim, e como acontece em todos os casos o mito é maior do que a realidade. Ele construiu um mito poderoso devido a vários fatores, entre os quais, conta o muito o fato de ele ser de origem pobre. Até hoje o presidente é considerado um operário, mas não pega em uma ferramenta há 50 anos. Isso o ajuda a fomentar uma figura.
E o Bolsa-Família?
Nós fomos educados na ética cristã, que nos impede de sermos indiferentes à fome. Então, ninguém pode ser contra. Agora, politicamente, o programa diz que o crescimento econômico continua sendo excludente, que é preciso algo por fora do salário para dar condições de vida às pessoas. Outro fator grave é que ele é uma regressão, uma volta à política personalista, baseada no favor, algo ruim da tradição brasileira.
André Singer, cientista político e ex-assessor de Lula na Presidência, compara os anos Lula aos de Roosevelt (presidente dos EUA entre 1933 e 1945 e recuperou a economia daquele país). O senhor concorda?
Respeito muito o André como intelectual. Ele elevou o nível de debate no PT. Mas acho que há um equívoco da parte dele. Lula não pegou o País em uma grave crise. Os anos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) não foram gloriosos, mas não foram de quebradeira, de jeito nenhum. Roosevelt pegou os EUA no fundo da crise. Além disso, o André se esquece de que Roosevelt acabou com o trabalhismo americano. Entre as grandes democracias do mundo, a única na qual os trabalhadores não têm um partido é a dos EUA.
O sr. vê traços autocráticos no presidente Lula?
Montado nessa popularidade, ele exagerou. O presidente esteve à beira de se tornar autoritário. Foi além dos limites. Só duas pessoas no século 20 disseram, como ele, que eram a encarnação do povo: Adolf Hitler e Joseph Stalin.
Lula e o PT chegaram ao Planalto fazendo um discurso forte contra a corrupção. O sr. se decepcionou nesse quesito?
O poder absoluto corrompe muito. O presidente do Brasil pode nomear muitos cargos. Não há partido que resista a uma coisa dessas. O PT se perdeu no poder, ficou menor do que o presidente e não consegue impor seu programa. Lula e o PT tem um estilo predatório de administrar o Estado e lidar com as finanças públicas.
Lula foi melhor do que Fernando Henrique Cardoso?
Fui muito amigo do Fernando Henrique durante 12 anos e nos afastamos quando ele virou presidente. Fui revê-lo depois que ele deixou Brasília. Sei quem ele é e já fiz essa comparação. Fernando Henrique fez muito mal ao Estado com as privatizações. Ele, com isso, quebrou a capacidade de o Estado regular a economia, quebrou alguns instrumentos construídos com o sacrifício do povo para que o Estado pudesse intervir na economia. Mas tentou avançar institucionalmente, e essa é a grande diferença entre eles. O Lula não tem uma criação institucional. A República não avançou um milímetro com Lula. O que é celebrado na gestão Lula não se transformou em regra. Getúlio Vargas (ditador e presidente do Brasil de 1930 a 1945 e presidente de 1951 a 1954), quando criou as leis trabalhistas, obrigou as empresas a seguirem as regras da nova legalidade, que significavam uma nova hegemonia. A sociedade caminha pela luta de classes dentro dos caminhos que a hegemonia cria. Não ocorreu isso com Lula.
Mas e o aumento do salário mínimo não é um avanço?
Não, é um processo da economia, nada está garantido. Se amanhã a economia der para trás, o salário mínimo que se dane, não é um avanço. O salário mínimo do Juscelino Kubitschek (presidente entre 1956 e 1961) chegou, em valores de hoje, a R$ 1.500, e caiu porque as forças do trabalho não tiveram capacidade de sustentá-lo e porque logo depois viriam os governos militares. Avanços são direitos. Para ficar na história como um estadista, não apenas como um presidente popular, Lula deveria ter transformado, por exemplo, o Bolsa-Família em legislação constitucional. Não fez reformas. O Lula não é um estadista, de jeito nenhum. Ele não é aquele que constrói instituições que significam uma nova hegemonia.
O sr. estava entre os fundadores do PT...
Isso de fundador não faz muita diferença. Muita gente estava na fundação do partido (no colégio Sion, em São Paulo, em 1980) e depois nunca mais apareceu. O que interessa é a militância, e eu fui militante.
Como o sr. acha que a era Lula ficará para a História?
Se os historiadores tiverem juízo, ele será lido como o presidente mais privatizante da história. Ele não é estatizante, isso é falso, uma lenda que a imprensa inventou e que ele usa como arma. Ele é privatizante no sentido de estar criando regras para que poucos grupos controlem a economia brasileira, usando o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) para isso. Com Lula, nós estamos entrando naquilo que a teoria marxista chamava de capitalismo monopolista de estado, do qual não há volta. Todas as vezes que essas forças crescem, as dos trabalhadores diminuem. É esse país que ele vai legar para a Dilma.
Diante da alta popularidade de Lula, o sr. se arrepende de ter saído do PT?
De jeito nenhum. Esse negócio de popularidade é como maré, vai e volta.
Chico de Oliveira é professor aposentado de sociologia da Universidade de São Paulo, da qual recebeu o título de professor emérito, e foi um dos fundadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Entre seus livros, destaca-se Crítica à Razão Dualista.
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