No terceiro ano do governo Lula, em 2005, o Brasil foi um dos 168 países a se comprometer com as Nações Unidas a elaborar um plano de defesa prévia das populações na iminência de uma catástrofe ambiental - como o tsunami asiático daquele ano, que deu origem à iniciativa. Para dar tempo aos países mais desvalidos, fixou-se em 10 anos o prazo máximo para a implantação das medidas. Na segunda-feira, quando chegava a 665 o número de mortos da tragédia na região serrana do Rio, o governo anunciou a criação de um Sistema Nacional de Alerta e Prevenção de Desastres Naturais do País. Foram, portanto, seis anos desperdiçados.
Costuma-se dizer que, nas grandes burocracias, a mão esquerda não sabe o que faz a direita, e vice-versa. Mas o Planalto sabia que não tinha feito quase nada para cumprir o acordo que assinara - e admitiu a desídia em documento remetido à ONU, revelado domingo por este jornal. Instituiu-se um Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres, que ainda não viu a cor dos míseros R$ 3 milhões que deveria ter recebido a contar de 2008. Agora, como se fosse uma proeza, o governo alardeia que, graças ao novo sistema - que parece ser pouco mais do que um ajuntamento de palavras -, será possível reduzir em 80% o total de vítimas nas áreas por ele cobertas em caso de calamidades. Quando? Até o final do mandato da presidente Dilma Rousseff.
Os brasileiros sabem que, em matéria de promessas oficiais, "até o final" costuma significar "no final" - e isso, na melhor das hipóteses. No caso da tragédia fluminense, o prazo é "assustador", avalia a consultora da ONU e diretora do Centro para a Pesquisa da Epidemiologia de Desastres, Debarati Guha-Sapir. "Não entendo a razão de um país levar quatro anos para ter um sistema de alerta em funcionamento", espanta-se. Para o ministro de Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, os primeiros efeitos do plano se farão sentir já no próximo verão. Mas será preciso começar de muito baixo. Segundo dados oficiais, apenas 426 dos 5.565 municípios brasileiros têm órgãos de Defesa Civil minimamente estruturados. "O sistema tem se revelado frágil", constata o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho.
O governo estima que 5 milhões de pessoas vivem em 500 áreas de risco, ou de deslizamento, ou de inundações. Mas são números incertos. Em São Paulo, por exemplo, a população exposta alcançaria 115 mil, mas o mapeamento encomendado pela Prefeitura - que, por sinal, ainda não o divulgou - exclui áreas sujeitas a cheias. O novo secretário de políticas e programas de pesquisa do Ministério de Ciência e Tecnologia, Carlos Nobre, enfatiza a urgência em remover os moradores de margens de rios e favelas não urbanizadas em áreas de "declive suicida". Que o diga a promotora Anaiza Helena Malhardes Miranda, do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Ela conta que uma ação civil pública para remover habitantes de 30 casas irregulares numa região de risco em Teresópolis se arrasta há inacreditáveis 19 anos. Quando a ação foi julgada em primeira instância, passados 9 anos, havia na área 350 moradias, com água, luz, telefone e asfalto. "O Poder Judiciário mandou o município reflorestar o local, mas não deu autorização para a retirada das pessoas", relata Anaiza. "Em suma, quase 20 anos depois da ação, não temos nenhuma casa demolida e nenhuma área reflorestada." Por sorte, o lugar não foi atingido pelas águas da semana passada. Mas, em outro ponto de Teresópolis, pedido idêntico de demolição perdeu o sentido. "A liminar da natureza foi mais eficiente", lamenta a promotora.
Não fosse a tragédia serrana, cujos efeitos levarão se sabe lá quantos anos para ser superados, histórias como essa nem viriam a público. É auspicioso que o sistema de alerta lançado pelo governo tenha no seu cerne o supercomputador Tupã, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Mas a previsão de catástrofes, com base em tecnologia avançada, será um exercício acadêmico, se os poderes públicos deixarem encostas e várzeas habitadas - e abandonadas.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário