sábado, 22 de janeiro de 2011

Liga das nações

Míriam Leitão




Era uma vez um mundo bipolar. Ele acabou há muito tempo. Um muro caiu sobre aquele mundo dividido entre duas potências inimigas. Esta semana, os chefes de Estado das duas maiores economias se encontraram: Barack Obama e Hu Jintao. Houve chispas e arestas. Mas a relação entre eles é de conflito e interdependência; de amor e ódio. Eles se separam e se misturam.

Os EUA são o país que mais compra produtos chineses. A China é o maior financiador do déficit público americano. Cerca de 60% das exportações chinesas são feitas por empresas de capital aberto, muitas delas, com participação americana. O yuan desvalorizado ajuda a combater a inflação nos EUA, mas dificulta a recuperação econômica. As duas maiores economias do mundo dependem uma da outra e desconfiam uma da outra.

A corrente de comércio Estados Unidos e China foi de US$450 bilhões nos doze meses terminados em novembro de 2010. É mais que a corrente de comércio do Brasil com o mundo. O déficit para os americanos chegou a US$270 bilhões, e isso dificulta a recuperação econômica. Com os setores privado e público endividados, a saída para os americanos é crescer através das exportações. Os chineses utilizam grande parte do seu superávit comercial com os Estados Unidos para financiar a dívida americana. Os chineses carregam quase US$900 bilhões em títulos do governo americano.

- A relação dos dois países é de dependência econômica mútua. A China usa suas reservas, fruto do superávit comercial, para comprar títulos americanos. Desse jeito, o governo americano pode fazer dívidas e rolar os papéis com juros muito mais baixos - explicou o economista Raphael Martello, da Tendências consultoria.

Entrelaçados por esse novelo econômico, o presidente da maior nação capitalista do mundo, Barack Obama, recebeu o presidente da nação supostamente comunista, Hu Jintao, em Washington. Digo supostamente porque a China é cada vez mais capitalista na economia, mesmo governada pelo Partido Comunista. Para falar para seu público interno, Obama teve que pedir respeito aos direitos humanos na China, país que mantém preso o Prêmio Nobel da Paz. Os Estados Unidos vivem um período de forte radicalização política. A China já fez sua sucessão. Xi Jiping assumirá em 2012 vindo de outra linha do PCC.

Na área econômica, reclamações americanas contra algo que fere a indústria do mundo inteiro: a subvalorização da moeda chinesa. Mas ambos precisam desse saldo comercial.

- A China depende muito dos americanos. Se os EUA pararem de comprar produtos chineses, a economia chinesa entra em colapso. Se os chineses venderem os títulos que já possuem, a economia americana também entra em colapso - resumiu o especialista em comércio exterior Joseph Tutundjian.

A pauta de importações americana de produtos chineses é enorme: vai de manufaturados, como roupas e bolas de basebol, a bens de consumo durável e maquinário. Esses produtos, que chegam a baixos preços aos Estados Unidos por causa da subvalorização do yuan, ajudaram por muitos anos a segurar a inflação americana e a manter os juros baixos durante os anos 2000.

As crises imobiliária e financeira deixaram as famílias americanas endividadas. O consumo, que sempre foi o principal motor da economia, precisa voltar-se para produtos fabricados pelas empresas do país. O difícil é quantificar o quanto a indústria americana depende de produtos chineses.

- O que também complica a relação comercial atual é que a China deixou de ser um vendedor de produtos de baixo valor agregado, como foi por muitos anos, e começou a entrar no setor de alta tecnologia. Os chineses já são os principais exportadores de bens de alta tecnologia para a União Europeia. Então, eles se tornaram um forte concorrente para os produtos americanos - explicou Rodrigo Maciel, da consultoria Strategus.

Ontem, a China divulgou crescimento de 10,3% do PIB em 2010. Ganhou o reconhecimento japonês de que já é a segunda maior economia do mundo. O caminho para o crescimento da China nas duas últimas décadas tem percursos semelhantes aos de outros países asiáticos, como o próprio Japão, nos anos 60 e 70, e Coreia do Sul, nos anos 80 e 90.

- O crescimento da China segue o modelo japonês e coreano. Com a diferença que os chineses têm uma população muito maior e um solo mais rico em matéria-prima. Com a enorme mão-de-obra barata, que migrou do campo para as zonas industriais, e o câmbio desvalorizado, os produtos chineses ganharam o mundo. Além disso, o país exige transferência de tecnologia. Uma empresa estrangeira precisa ser sócia de uma empresa chinesa para atuar no país. É o que acontece com a nossa Embraer - explicou Tutundjian.

O grande entrave para a valorização do yuan é justamente o modelo exportador. O governo chinês sabe que não pode simplesmente valorizar sua moeda, como querem os americanos e o resto do mundo, porque isso seria uma catástrofe para suas indústrias.

- O motor do crescimento da China terá que migrar gradualmente do setor externo para o interno. Com isso, o yuan vai se valorizar devagar, até para conter pressões inflacionárias. É o que já está acontecendo. Depois de ficar muito anos congelado, o yuan se valorizou 3,23% frente ao dólar nos últimos seis meses. É pouco, mas é alguma coisa - explicou Martello.

Era uma vez um mundo em que duas potências faziam ameaças nucleares e dividiam o planeta. Era tosco. Hoje, a guerra de conquista é mais sutil, complexa. Os Estados Unidos perdem percentuais do PIB global e não se conformam. A China não se sacia com o que já engoliu.
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