domingo, 3 de outubro de 2010

Autobiografia em advérbios

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NIVALDO PEREIRA
Já dei um abraço em Hermeto Pascoal. Já tive um fusca verde-água chamado Bugrelau. Já pulei fogueira de São João. Já fui mordido por dois cachorros. Já passei de ônibus pela cidade maranhense de Imperatriz. Já perdi a conta de quantas vezes vi o filme Hair. Já acampei em Mangue Seco. Já tomei um porre medonho de licor de maracujá. Já li catecismos do Carlos Zéfiro. Já me escondi debaixo da cama. Já caminhei na Muralha da China. Já contei estrelas e tive medo de criar verrugas nos dedos. Já fui míope e quebrei os óculos. Já fui rezado contra mau-olhado. Já li fotonovelas. Já tomei choque elétrico em torneira de chuveiro. Já fiquei 15 dias mancando de uma perna depois de uma injeção de Benzetacil. Já acordei tarde no dia da última prova de um vestibular. Já aprendi a levantar depois de um escorregão.
Nunca aprendi direito a empregar o past perfect do inglês. Nunca li Proust. Nunca gostei muito de bossa nova. Nunca tive ambição de ser milionário. Nunca quis conhecer os Estados Unidos. Nunca subi no Cristo Redentor. Nunca fui a Manaus. Nunca voei de helicóptero. Nunca comi pato no tucupi. Nunca provei cachaça com cobra dentro da garrafa. Nunca acreditei em Papai Noel. Nunca imaginei que um dia viesse morar em Caxias do Sul. Nunca soube diferenciar um Monet de um Manet. Nunca deixei de gostar da voz de Gal Costa. Nunca usei jeans rasgado que não fosse pelo tempo de uso. Nunca tive tolerância com gente que pede desculpas por tudo. Nunca esqueci do remorso sentido depois de matar um passarinho com estilingue. Nunca farei tatuagem porque tenho horror a agulhas. Nunca considerei a palavra nunca um fim para sempre.
Não sei dançar conforme a música. Não sei assoviar vaiando. Não sei estalar os dedos para indicar intensidade. Não morro de amores por bife à milanesa. Não tenho paciência para ler manuais de instruções. Não gosto de noites de domingo em frente à televisão. Não admito que falem mal do Odair José. Não consigo disfarçar o medo quando raramente monto a cavalo. Não discuto crenças nem religiões. Não acho graça em tomar cerveja sozinho. Não suporto crediários. Não recebo panfletos distribuídos na rua. Não tenho disciplina para praticar esportes. Não vejo filmes com Mel Gibson. Não tenho a menor vocação para pechinchar. Não sei tocar nenhum instrumento. Não sinto fome logo que acordo. Não tomo leite puro. Não tenho medo de avião. Não tenho coragem de saltar de pára-quedas. Não vejo problema em sempre mudar de opinião.
Quase morri depois de um sarampo. Quase morri de novo depois de outro sarampo. Quase acertei o terno da loto na única vez em que joguei. Quase acreditei que devia ser publicitário e não jornalista. Quase enlouqueço quando escuto a transmissão de um jogo de futebol pelo rádio. Quase perco a compostura se falam comigo gritando. Quase espumo de raiva quando sou acordado cedo por alguma ligação de telemarketing. Quase constipei de tanto chorar na cena final de La Strada de Fellini. Quase gaguejei de emoção ao apertar a mão calorosa de Mercedes Sosa. Quase fui ao delírio quando vi uma montagem londrina de Jesus Cristo Superstar. Quase explodi de encantamento entre vaga-lumes numa certa noite estrelada da Chapada dos Veadeiros. Quase vivo implicando comigo mesmo por não saber ao certo o ponto de conter e o de ultrapassar as intensidades da vida.
Ainda hei de conhecer o Alasca. Ainda quero ler Proust. Ainda quero me comunicar sem as restrições do idioma. Ainda espero viver sem ter medo do próximo. Ainda sonho com a casa de amplo quintal e fértil jardim. Ainda pretendo caminhar bastante por esses chãos de Deus. Ainda vou rir e chorar outras vezes com Giulietta Masina em Noites de Cabíria. Ainda quero inventar macaquices com as crianças pequenas. Ainda quero aprender a tocar um instrumento. Ainda desejo passar muitas tardes em Itapuã. Ainda tenho no pé esquerdo a cicatriz de um caco de vidro da infância. Ainda guardo a lembrança do primeiro banho de rio. Ainda dói quando lembro daquele passarinho morto. Ainda gosto de contos de fadas e de mitologia. Ainda anseio explorar outros eus de mim. Ainda voarei de paraglider. Ainda perderei todo e qualquer medo de viver feliz.
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Grato Marina Cassino de Almeida.

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