FERNANDA TORRES
FOLHA DE SÃO PAULO
Não se deve crucificar artistas nem empresários; ninguém deseja a pecha de onerar o povo para existir
NO CLÁSSICO romance de Fiodor Dostoiévski "Os Demônios", revolucionários radicais atuam clandestinamente, incitando a população a vaiar o poeta Stiepan Trofímovitch durante o sarau de uma pequena cidade do interior da Rússia. O objetivo do grupo é exterminar uma arte considerada burguesa.
Trofímovitch responde com veemência à agressão:
"Eu proclamo (...), proclamo que Shakespeare e Rafael estão acima da libertação dos camponeses, acima da nacionalidade, acima do socialismo, acima da nova geração, acima da química, acima de quase toda a humanidade, porque são o fruto, o verdadeiro fruto de toda a humanidade e, talvez, o fruto supremo, o único que pode existir! É a forma da beleza já atingida, e sem atingi-la eu talvez já não concordasse em viver..."
O caso de amor e ódio da arte com a sociedade provoca reações passionais. No Brasil, já fui testemunha de pelo menos um momento de ojeriza explícita que culminou com o fechamento sumário da Embrafilme.
Os mesmos ataques de agora, calcados na dependência do dinheiro público e na formação de panelas culturais, culminaram com a decisão do ex-presidente Fernando Collor de decretar o fim da estatal sem temer represálias.
O cinema demorou mais de dez anos para se reestruturar.
Antes da criação da Lei Sarney, em 1986, os subsídios culturais aconteciam por meio de patrocínio, dinheiro dito bom, de propaganda das empresas. Mas chegou-se à conclusão de que esse sistema era elitista e favorecia os artistas mais conhecidos.
O modelo foi enterrado e as leis de incentivo surgiram para democratizar a relação do empresariado com a cultura.
Durante os oito anos de FHC, a política do Planalto ampliou os subsídios e deixou que o mercado se autorregulasse. Quando Lula assumiu, o MinC decidiu exercer um controle mais incisivo.
As dúvidas em relação à necessidade dos artistas consagrados utilizarem tais benefícios vem ganhando força desde então.
O ex-ministro da Cultura Juca Ferreira já chamava a atenção para os dividendos que a associação de um artista de renome com marcas e produtos trazia para as empresas e defendia, em tais casos, a entrada de dinheiro bom na negociação.
Carmen Mello, produtora associada a mim e a minha mãe, tenta desde 2008 convencer as firmas envolvidas a empregarem, como antigamente, sua verba de propaganda nos espetáculos que produz. Mas, sem as leis de isenção, não há interesse.
Não se deve crucificar artistas e empresários. Ninguém deseja para si a pecha de onerar o povo para poder existir. Há mais de 20 anos, todo o mercado foi direcionado para agir segundo as normas vigentes. A volta do patrocínio precisaria ser motivada.
Maria Bethânia estreou seu espetáculo de poesia sem apoio de nenhum benefício fiscal. A bilheteria do teatro do Fashion Mall, no Rio de Janeiro, cobriu os custos e o público fiel foi suficiente para lotar a curta temporada sem maiores gastos com publicidade.
Bethânia produziu uma obra de delicadeza tão notável que incitou Hermano Vianna a levá-la para a internet, de graça e por toda a vida. Todas as empresas contatadas desejaram se aliar ao projeto, mas insistiram nas leis de incentivo.
Bethânia cobrou pela elaboração, feitura e doação "ad eternum" de seus direitos de imagem para veiculação gratuita, R$ 1.643 por vídeo. O Minc, que aprovou outros sites por valores até superiores, entendeu que era justo.
A manchete na primeira página afirmando que Bethânia receberia R$ 1,3 milhão para fazer um blog, apesar de verdadeira, sugere falcatrua e má-fé.
O site "O Brasil Precisa de Poesia" se transformou no bode expiatório da encruzilhada da política cultural brasileira. Aberrações graves poderiam ter servido de exemplo, mas queimar uma feiticeira da dimensão de Bethânia tem um valor insubstituível do ponto de vista do escândalo.
O Brasil subsidia infindáveis setores de sua produção, o papel que imprime este jornal inclusive. Do total desse investimento, um por cento é destinado à cultura.
A economia criativa, propulsora de grandes negócios no mundo civilizado, está engessada no nosso país. A arte foi estatizada e se transformou, à vista do público, em um pária dependente do tesouro.
Talentos como o de Bethânia teriam um valor inestimável e seriam remunerados à altura se encontrássemos uma maneira de fazer a poesia e a educação participarem da economia da sétima potência mundial.
Algum carro, xampu ou refrigerante se interessaria em associar sua imagem a Guimarães Rosa e a Fernando Pessoa?
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