Aspectos controvertidos da punição do não condenado ante a lei da Ficha Limpa
Desembargador Doorgal Borges de Andrada (TJMG)
Vice-Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
Torcemos todos pela melhoria do nível da política brasileira. Quanto ao tema, vimos o Egrégio Supremo Tribunal Federal dividido ante a aplicação da polêmica Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n. 135/10). Assim, modestamente trazemos rápida análise histórica e reflexão jurídica sobre a nova punição prevista na referida Lei.
Antes das profundas revoluções sociais e políticas que sacudiram o mundo ocidental no final do século XVIII, sobretudo na America do Norte, na França e na Inglaterra (revolução industrial) a humanidade não praticava os direitos e garantias individuais, por exemplo : todos são iguais perante a lei, e, ninguém será considerado culpado (ou punido), sem o trânsito em julgado da condenação, seja civil ou penal.
Tais conquistas vieram após incontáveis revoltas, guerras, revoluções e lutas que nos deixaram vivos nomes de pensadores e heróis do porte de George Washington, Bolívar, José Bonifácio, Locke, Rousseau, Montesquieu, Lincoln, Gandhi, Luther King, dentre tantos. Terminada a II Guerra nasce para o mundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) consagrando, sem distinção no art. 21 . o direito de votar e ser votado. E mesmo assim, somente com a Lei dos Direitos Civis na década de 1960 os estados sulistas dos EUA praticaram a igualdade de direitos entre brancos e negros.
No Brasil, após a independência em 1822 apenas os grandes proprietários de terra podiam votar e ser votado. Décadas depois admitiram os bacharéis e os homens ricos. Somente no século XX igualaram-se os direitos das mulheres e homens alfabetizados (Carta de 1934), o que foi mantido na Lei Magna de 1946 para o exercício da cidadania - votar e ser votado- . Na Constituição de 1988 os analfabetos passam a adquirir o direito de votar, mas, sem o direito a ser votado.
No entanto, com a Lei da Ficha Limpa cabe questionar e refletir se as conquistas desses direitos plenos não estão sendo juridicamente desafiadas neste momento histórico.
Sob certos aspectos portanto, o cidadão apenas processado já se iguala a um condenado.
Retrocesso jurídico, antidemocrático ? Assim como no passado, vemos que antes do pleno exercício da ampla defesa, antes do contraditório e antes da decisão irrecorrível o réu já sofre punição. Aliás, tal tipo de punição é prevista, mas, apenas como efeito da condenação irrecorrível (C.P. e C.F/88). Agora, data vênia,, vivenciamos a negação aos princípios elementares e direitos da humanidade, com ofensa às garantias universais e individuais inalienáveis, através deste forte recuo jurídico-político-social da Lei.
Acreditamos que a Lei que se propaga oriunda das ‘massas’ e aplaudida pela imprensa, até pode nos dar uma falsa sensação de avanço político. Mas, num contexto profundo e amplo tememos que sustentada num tom antidemocrático ela esteja a nos manipular sob o superficial chavão da prática um ato ‘politicamente correto’ (porém, arbitrário).
E pior. Se a idéia prosperar, no futuro poderá ser exigido de outros setores do serviço púbico, como procuradores, juízes, ministros do STF, STJ, de delegados, médicos, policiais, jornalistas, promotores, professores etc.. que também sejam afastados em definitivo - como punição - mesmo antes da decisão judicial com trânsito em julgado.
Ora, nós todos queremos honestidade na política. Porém, não entendemos ser prudente legislar contra as garantias e direitos conquistados através de séculos. Pensamos que não se pode matar/ferir a democracia em nome do seu duvidoso aperfeiçoamento, ou alegando corrigir suas eventuais falhas (como o fascismo promoveu, no passado).
Talvez melhor teria sido se a lei tivesse debatido temas profundos de aperfeiçoamento político-eleitoral para o país como o voto distrital, regras para coligações, a suplência de senador, o parlamentarismo, eleição proporcional, financiamento de campanha, etc.
Cabe ainda lembrar o ditador Getúlio Vargas. Fechando o Congresso ele também proibiu eleições gerais para governadores, vereadores e prefeitos em todo o país, e, para justificar tal violência, lançou a máxima: “voto não enche barriga”. Ora, será que os em pleno século XXI os membros dos nossos Poderes ainda imaginam que precisam tutelar o povo tolhendo indiretamente a soberania popular ? Até quando ?
A soberania popular é absoluta, consagrada na Constituição que garante o Estado Democrático de Direito. Sem respeito à Carta Magna de nada nos valem os art. 5ª. LV e art. 15 da CF/ 88. E se um Poder se vê “mais soberano” que a Lei Maior iremos viver sob o autoritarismo e seremos “escravos dos homens, e não, das leis”.
Assim, acreditamos que a Lei está a reviver aspectos da ditadura Vargas e do AI-5 dos governos militares, pois: 1) suspende (pune/cassa) ou restringe direitos políticos democráticos antes de uma condenação irrecorrível ignorando a vital conquista da civilização inserida no sagrado respeito à presunção da inocência, seja no direito civil, eleitoral, criminal, administrativo, etc... para todos, igualmente ; 2) restringe o exercício da cidadania plena para aos eleitores em geral , na hora da escolha nas urnas.
Concluindo, parece-nos verdade que na história da humanidade, sempre em nome dos bons costumes, da moral e da honestidade, de tempos em tempos surgem leis tirânicas e arbitrárias – espetaculares - que visam jogar na fogueira dos justiceiros pessoas legalmente primárias sem uma condenação final sob o ‘due processo of law’. As épocas mais marcantes e cruéis que negaram estes princípios à humanidade foram as do absolutismo, da inquisição, do comunismo e do nazi-fascismo.
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