domingo, 3 de outubro de 2010

O grande pleito cívico

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 JOÃO UBALDO RIBEIRO - O ESTADO DE SÃO PAULO - 03/10/10

Ainda peguei o tempo em que, em dia de eleição, os jornais estampavam um sentencioso editorial com o título acima, ou bem semelhante.
Fazia parte de uma coleção estabelecida, estoque de qualquer redação bem preparada. Havia editorialistas famosos por sacarem da gaveta o artigo apropriado para a data, o qual, depois de sofrer algumas alterações cosméticas, voltava a ser publicado.
Nunca de fato testemunhei essa prática, mas existiam, sim, os editoriais padrão. Lembro com particular afeto o "Evoé, Momo!" do
sábado de carnaval, o "Esperança que se Renova" do primeiro do ano e o "Tempo de Meditação" da Quaresma. Eu mesmo perpetrei diversos, em cada uma dessas categorias, meu passado me condena.
Atualmente, acho que, para dias de eleição, o modelo mais em uso é o "Festa da Democracia", mas não foi por saudosismo que preferi o pleito cívico, foi por causa do clima que percebo em torno. Posso estar percebendo mal, mas não vejo festa no ar, não vejo vibração, a não ser com pinta de falsificada, não vejo real empenho em ninguém, exceto nos candidatos. Não conversei com ninguém que vá votar com entusiasmo ou mesmo torça fervorosamente pela vitória de algum candidato. A impressão que se tem é que a maioria vota porque o voto é obrigatório e não acredita que ele vá mudar nada, tanto faz como tanto fez.
Não é festa nenhuma, é o cumprimento de uma tarefa felizmente tornada cada vez mais fácil e rápida.
Não sei por que isso acontece, não sei se alguém tem uma resposta satisfatória.
Mas é fácil imaginar alguns tipos de eleitor, como, por exemplo, o de quem vai votar apenas porque é obrigatório. 
Provavelmente, o que está na cabeça dele é que, não importa em quem ele vote, vão continuar roubando e se locupletando do mesmo jeito, sem que ninguém jamais seja punido ou devolva o que furtou. Pelo contrário, os poderosos sobem cada vez mais na vida, engordam, ficam ricos, suas famílias prosperam, seus correligionários se empregam, seus amigos mamam o que podem. Os privilégios e mordomias permanecem e quem quiser que encontre um jeito de entrar no circo e tirar também sua lasquinha, o dinheiro está aí mesmo, é de quem botar a mão, o resto é conversa e enrolação de meliante.
Às vezes, não parece haver absolutamente exceção alguma, para quem é alçado a um cargo de algum poder, no Brasil: o primeiro móvel de cada um está longe de ser o bem coletivo e ainda mais longe de ser o apego a uma ideologia ou ideal. Mostra a abundante experiência que a primeira motivação de cada um - e talvez a segunda, a terceira e a quarta - não é servir, é se servir. 
Todo mundo está farto de constatar, entre surpresas, sustos e decepções, que é assim mesmo e poucos conhecem um homem público que não tenha ficado bem de vida em alguns anos de carreira. 
Os candidatos, em grande parte, viraram mercadorias, vendidas quase como sabonetes e agindo que nem bonecos de ventríloquos, como quando carregam um ponto eletrônico atrás da orelha e têm suas respostas sopradas pelos marqueteiros.
 A conversa no fundo é a mesma, a suspeita de mentira ronda a todos, as promessas grandiloquentes jorram em cascatas, números e estatísticas são lançados tão ao deus-dará quanto confete. A propaganda na TV é uma sucessão grotesca e confusa de semblantes intercambiáveis, os partidos políticos há muito não querem dizer nada e são meras plataformas para o encaminhamento de interesses quase sempre subalternos, de que se troca lepidamente, diante de vantagens pessoais oferecidas por outras. 
Antigamente, o Brasil precisava de reformas e se usava a expressão "reformas de base". Nunca foram feitas, mas, de repente, parece que já foram todas realizadas, pois ninguém fala mais nelas. 
Podemos não haver notado, mas já devemos ter feito, sem  ordem de importância, a reforma tributária, a administrativa, a penal, a
judiciária, a política e assim por diante. Esta última, então, nem se fala porque ninguém acredita que o Congresso vá produzir leis que
afetem seus privilégios. Pelo contrário, deverá fortalecê-los, para resistirem a possíveis futuros ataques.
Quanto às outras, iriam prejudicar aqueles que, no estado atual de coisas, estão se dando bem. Portanto, as famosas reformas deverão
continuar a ser mencionadas conforme a necessidade e esquecidas conforme a tradição.
E, na outra ponta do espectro, que eleitor se pode imaginar, saindo para a festa da democracia, neste que espero ser um belo domingo de sol primaveril? É o que nem viu campanha na TV e, se viu, não entendeu. Vai, mais uma vez, votar errado, segundo a ótica de observadores cheios de si. Vai trocar o voto por dinheiro, por uma "colocação" ou emprego, por uma dentadura ou uma intervenção cirúrgica. 
Ou tem medo de que a bolsa família desapareça tão inexplicadamente quanto surgiu. 
Ou ainda, no que acredito ser a maior parte dos casos, precisa continuar em bons termos com os poderosos de sua área, de cuja boa
vontade depende para obter o que a lei diz ser seu direito, mas a realidade mostra que é favor, dependente da generosidade desses
poderosos. Quer dizer, vai, na minha opinião, votar com absoluta correção.
Aproveita-se do voto na única ocasião em que ele lhe tem alguma serventia.
E, como o seu equivalente mais bem situado, também acha que todo mundo rouba e então se garante logo e pega o que está à disposição. 
Bem, a situação, afinal, talvez não seja tão feia assim, estas tintas estão meio carregadas. No boteco mesmo, na semana passada, a eleição interessava a muita gente. A aposta em que vai haver segundo turno estava pagando um chope e meio por um. E até as eleições que virão depois da de hoje eram antecipadas com ansiedade. Deve ter feriadão, era o comentário geral.
A propaganda na TV é uma sucessão grotesca de semblantes intercambiáveis.

 JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor

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