quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Mudar para permanecer


MERVAL PEREIRA
O GLOBO 

Quem assiste à discussão sobre o valor do salário mínimo pode ficar convencido de que a responsabilidade fiscal entrou definitivamente na agenda política da administração petista. O governo acusa de irresponsáveis os oposicionistas que defendem o valor de R$600, e ameaça os dissidentes de sua base parlamentar com retaliações.

O ministro da Fazenda Guido Mantega desenhou uma catástrofe se a posição do governo de manter o mínimo em R$545 não prevalecesse na Câmara, levando a aumentos mais fortes dos juros para controlar a inflação, que já surge no horizonte acima do teto oficial.

Mantega fez as contas: cada real a mais no piso salarial leva o governo a gastar R$300 milhões a mais por ano, por causa da Previdência e demais benefícios de assistência social que são regulados pelo mínimo.

Fundado em 1980, o PT tem mais tempo de oposição no plano federal do que de governo, aonde chegou apenas em 2003, depois de ter sido derrotado em três eleições seguidas - 1989, 1994 e 1998.

Durante esse período, estabeleceu um padrão de oposição que distorceu a política brasileira de tal maneira que a irresponsabilidade passou a ser uma arma perfeitamente legítima do jogo político.
Nos oito anos e 47 dias de governo, buscou o equilíbrio fiscal durante a maior parte do tempo, embora objetivos políticos de tomar conta da máquina estatal não tivessem barreiras, e o aparelhamento e o inchaço do setor público já prenunciassem um desequilíbrio nas contas governamentais muito antes que ele se materializasse.

E o PT não hesitou em rasgar o compromisso com o equilíbrio fiscal quando a prioridade passou a ser a eleição da sucessora de Lula.

Atingido o objetivo pessoal de Lula, e corporativo do PT, o novo governo está tendo que lidar agora com a dura realidade que ele mesmo criou, e subitamente torna a ser responsável e fiscalista, acusando a oposição de irresponsável.

É verdade que o salário mínimo foi fixado inicialmente em R$540 - e mais tarde passou para R$545 com uma pequena revisão nos cálculos - de acordo com uma política acertada com os sindicatos em 2007, com validade até 2023, baseada em critério que combina a reposição da inflação com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) nos dois anos anteriores.

Como o crescimento do PIB em 2009 foi negativo por causa da crise econômica mundial, o reajuste do mínimo será menor este ano.

Mas com a economia tendo se recuperado em 2010, com crescimento próximo a 8%, em 2012 o mínimo terá um reajuste maior. Não há, portanto, razão para mudanças de critérios.

Mas o parâmetro estabelecido pelo PT nos seus muitos anos de oposição é justamente esse, o de exigir do governo, qualquer governo, todas as concessões, fazendo sempre o papel de bom-moço e capitalizando simpatia por suas irresponsabilidades.

Em 2004, quando José Dirceu ainda era o primeiro-ministro, ele propôs a desvinculação da Previdência do salário mínimo, para permitir que a política de aumentos reais não colaborasse com o aumento do déficit.

A reação das centrais sindicais e dos aposentados foi tão forte que nunca mais o assunto voltou à discussão, a não ser que algum economista independente o ressuscite.

Dois em cada três aposentados ganham o salário mínimo, e os aumentos reais impactam diretamente os custos da Previdência.

Pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede a inflação até seis salários, o aumento real do salário mínimo foi de mais de 120% desde 1994, tendo sido de 44% no governo Fernando Henrique e de 54% no governo Lula.

Pela reação das centrais sindicais, que se mobilizaram contra o salário mínimo de R$545 que elas mesmas haviam aprovado em acordo com o governo na gestão de Lula, já se vê como é praticamente impossível se pensar em uma reforma da Previdência que realmente prepare o país para o futuro que terá mais velhos do que jovens, ao contrário de hoje.

A cada ano o número de pessoas acima de 60 anos nos próximos 25 anos vai aumentar em torno de 4%, e a atual situação não é sustentável.

Mas nada indica que existirá no horizonte um cenário político equilibrado para uma discussão de temas como esse.

Mais que técnica, a questão é política. O governo tem o direito de ser irresponsável quando bem entende, e exigir que a oposição seja responsável quando já não é mais possível conviver com o desequilíbrio fiscal que provocou?

A responsabilidade fiscal pode ser um instrumento transitório a ser ignorado quando os interesses políticos do partido no governo assim determinarem?

O ministro da Fazenda que comandou a gastança do dinheiro público pode ser o mesmo que agora exige austeridade?

A presidente que se elegeu à custa da irresponsabilidade fiscal, garantindo que não faria um reajuste fiscal, tem credibilidade para comandar os esforços de corte de R$50 bilhões?

São essas questões políticas que estão no ar pesado de Brasília nestes últimos dias, a denunciar certa farsa que tenta transformar um governo de continuidade num de ruptura para que tudo continue na mesma.
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