quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O petróleo cultural

SÉRGIO AUGUSTO
O Estado de S.Paulo


Alçada a 'Opep da cultura', a Comissão Europeia propõe programa de fomento às artes em geral, na contramão da pindaíba, reinante


Nas grandes crises econômicas, a cultura é sempre uma das primeiras vítimas, senão a primeira sacrificada no altar orçamentário. "Aqui é diferente", apregoavam os espanhóis até pouco tempo atrás, sem evidências em contrário. Até que em meados do mês passado, premido pela crise em curso, o governo espanhol fechou aquele centro cultural de Avilés, projetado por Niemeyer e ainda novinho em folha, e anunciou um corte de 50% nas verbas destinadas a museus e às artes em geral. Sem crédito na praça e com um dos mais elevados índices de desemprego da zona do euro, a Espanha, após três décadas de bonança financeira e fulgor cultural, não faz mais a diferença.

A Alemanha pode fazer. Não porque viva uma ressurreição cultural comparável à da Espanha pós-franquista ou de muito crédito ainda disponha na praça, mas porque, além disso, tem há seis anos um ministro da Cultura de se tirar o chapéu. Bernd Neumann, que nesta sexta-feira chegou aos 70, talvez nunca se torne tão famoso quanto Malraux ou Jack Lang, mas boa parte da Europa já o conhece de nome e por façanhas nada modestas, como, por exemplo, convencer a durona Angela Merkel, com a crise já fazendo estragos no continente, a investir € 50 milhões (R$ 118 milhões) a mais em cultura.

Semana atrasada, Neumann criticou a queda de nível da televisão pública do país. Fez um discurso contundente contra a sujeição de canais sem compromissos comerciais à estupidez reinante nos concorrentes. Merkel deveria emprestá-lo aos países vizinhos. E também ao Brasil.

Para Neumann, o bem mais precioso da Europa, seu maior capital de giro, é a cultura. Há três meses, na abertura do Congresso Europeu de Cultura, na cidade polonesa de Wroclaw, o filósofo Zygmunt Bauman rufou o mesmo tambor. "O futuro da Europa depende da cultura", proclamou o teórico da "liquidez" (não no sentido econômico) do mundo moderno, preludiando um arrazoado sobre a "babelização" do planeta, cada vez mais "um arquipélago de culturas", a seu ver carente de uma "nova Biblioteca de Alexandria", capaz de armazenar tudo que o "mosaico de diásporas" em curso vem produzindo.

Além de propor a criação de um "sistema integrado de traduções", que no mínimo tiraria uma legião de tradutores do desemprego, Bauman sugeriu aos presentes que se abstivessem de ver televisão durante os quatro dias do congresso, "para não se contagiarem pelo pessimismo". Mesmo 13 mil km distante de Wroclaw, acatei a recomendação do filósofo, e até hoje não abandonei a dieta.

A partir do segundo dia, tomou conta do congresso a interminável discussão sobre as diferenças entre arte (realização individual) e cultura (contribuição coletiva), recursos públicos e privados (ambos derivam de nossos impostos, certo?), mas sem sacrifício da questão central: como trazer a cultura para o centro do discurso social e econômico da nova sociedade? A certa altura, alguém lançou uma proposta de slogan: "A cultura é o petróleo da Europa".

No início da semana, a Comissão Europeia, alçada à condição de Opep da cultura continental, propôs um programa de fomento às artes em geral na contramão da pindaíba reinante. Batizado de Europa Criativa, é um projeto de perfil germânico, à altura do € 1,2 bilhão que Bernd Neumann tem em caixa para incrementar as atividades culturais na Alemanha. No total, será €1,8 bilhão alocado em artes visuais e performáticas, cinema, música, literatura e arquitetura, nos países da Eurozona, ao longo de seis anos. A desova começará em 2014 e beneficiará cerca de 300 mil artistas. Falta o principal: a concordância de todos os governos em abrir mão de recursos para gastos tidos como mais prementes até por quem considera a arte mais duradoura que a vida.

A despeito do ceticismo de uns ("o programa não estimulará a economia") e outros ("é ingenuidade supor que a arte possa arrefecer as tensões num mundo tão dividido como o nosso"), prevalece o otimismo dos que se comprometeram com a ideia de que aproveitar e estimular o potencial criativo das pessoas é um caminho seguro - e o mais digno - para se alcançar as metas de crescimento sustentável, de empregos e coesão social previstas para 2020.

Tão ou mais árduo será despertar o interesse da iniciativa privada em participar desse mutirão com uma nova mentalidade. Critérios de seleção pessoais e mercadológicos não terão vez. Mas como lidar com as corporações que criaram as próprias linhas de crédito cultural e pautam suas escolhas de olho no mercado? "O lucro fácil não pode ser o objetivo de quem financia o que quer que seja usando incentivos fiscais", interveio na discussão o artista plástico Dexter Dalwood.

Um dos muitos ingleses preocupados com a situação peculiar de seu país na crise econômica, Dalwood receia que artistas do Reino Unido não sejam contemplados pelo Europa Criativa por causa da oposição do primeiro-ministro David Cameron ao tratado econômico firmado mês passado e do crescente isolamento da Inglaterra da Europa continental. Um dos cardeais da Comissão Europeia já desfez tais rumores. "Não haverá retaliações", prometeu. Mas algumas barbas continuam de molho.

O euro teve, essa semana, sua maior queda frente ao dólar nos últimos 15 anos. Embora ancorada na libra, a "velha e pérfida Albion" não tem muito do que se vangloriar. Os mais recentes dados sobre o ensino no Reino Unido são esmorecedores: cortes profundos no orçamento e demissões em massa de professores, com destaque para os que ensinam arte, música e atividades artísticas afins. O governo Cameron não parece, pois, muito inclinado a investir em cultura, além da fortuna que enterrou nas Olimpíadas de Londres.

Também nisso os ingleses se diferenciam dos franceses. Nenhum outro povo acredita mais em seu "petróleo cultural" que os franceses. Boas razões não lhes faltam. Em 2010 o Museu do Louvre recebeu 5% a mais de visitantes que no ano anterior. Foram quase 9 milhões de visitantes, praticamente o dobro dos que pisaram no Museu Metropolitan de Nova York.
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