segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O pano de fundo

Míriam Leitão

 O GLOBO

A Europa viverá no futuro próximo uma situação semelhante a que os países latino-americanos viveram. Uma crise da dívida que só será resolvida após uma reestruturação em que os bancos também percam dinheiro. A repartição das perdas é exigência da Alemanha e dos fatos. O reconhecimento disso está elevando o nervosismo nos mercados. Esse será o pano de fundo do começo do governo Dilma.

Crise da dívida soberana de alguns países europeus; baixo crescimento, alto desemprego e paralisia decisória nos Estados Unidos; queda livre da moeda americana. O presidente do Fed, Ben Bernanke, tem sido muito criticado no mundo inteiro pela nova injeção de liquidez no mercado. Mais dólares circulando estão aumentando o risco de formação de bolhas, o que nos levaria de volta à casa um do jogo: bolhas que podem estourar levando a mais crises e risco inflacionário em países emergentes.

O índice de commodities agrícolas medido pela S&P disparou 73% em pouco mais de cinco meses. Saiu de 282.181 pontos, no dia 6 de junho, para 490.634 pontos no dia 9 deste mês, quando atingiu a máxima do ano. Em 10 dias, já caiu 13% até o fechamento de ontem.

Essa disparada coincide com os primeiros sinais de que a economia americana não teria a recuperação forte que se esperava. Foi quando começaram a surgir os primeiros rumores de que haveria uma nova rodada de estímulos econômicos por parte do Fed, que de fato acabou se concretizando. Sob a perspectiva de que haveria mais dinheiro circulando a juros zero, os especuladores correram para o mercado de commodities em busca de rentabilidade. O dinheiro está queimando na mão. O aumento de preços de commodities agrícolas é bom para o produtor brasileiro, mas a volatilidade e as bolhas podem provocar perigosos efeitos colaterais.

O professor José Márcio Camargo, da PUC-Rio, não vê saída para os europeus que não seja a moratória negociada. Ou seja, que os próprios credores aceitem novos prazos e juros para o pagamento das dívidas de Irlanda, Portugal, Espanha e Grécia. No caso da Irlanda, o contexto não deixa saída: governo endividado, baixo crescimento, deflação e bancos enfrentando uma crise de confiança. O Allied Irish Bank admitiu na sexta-feira que depende cada vez mais dos recursos do Banco Central Europeu.

- Crise fiscal só pode ser resolvida de duas formas: ou o governo devedor paga ou então renegocia. No caso da Europa, estamos vendo aumentar pouco a pouco o diferencial de juros para a rolagem da dívida dos países problemáticos em relação ao risco alemão. O quadro está se agravando lentamente desde o início do ano. O problema da renegociação é que ele vai quebrar a regra de que país desenvolvido não dá calote, então isso pode afetar a credibilidade da União Europeia como um todo - afirmou.

A Alemanha e a França negociaram à parte um acordo sobre a reforma das normas de resgate de países em dificuldades. Prevaleceu na discussão dos dois grandes a exigência alemã de repartição dos prejuízos. Isso aumentou a percepção de risco dos investidores, elevou ainda mais o custo das dívidas soberanas dos países mais frágeis e azedou ainda mais o clima entre os países da região. Segundo uma nota técnica da diretora do Centro Europeu para a Reforma, Katinka Barysch, se a Alemanha concordasse com a prorrogação dos fundos de assistência financeira, sem essa repartição dos custos, a decisão seria bloqueada pela Corte Constitucional da Alemanha.

Bernanke, para se defender das críticas que tem recebido pela decisão de aumentar a liquidez num momento de queda do dólar, disse que a raiz dos desequilíbrios comerciais e cambiais do mundo atual está na subvalorização da moeda chinesa, que representa um crescente risco econômico e financeiro. Ou seja, o tiroteio entre os dois gigantes continua, cada um culpando o outro.

Os dois têm razão: tanto um quanto o outro está, com sua política, ajudando a fomentar a instabilidade. José Márcio Camargo acha que o aumento de liquidez no mercado americano agora não faz sentido.

- Em 2008, fez todo sentido o aumento da base monetária porque o sistema financeiro havia entrado em colapso. O objetivo era destravar o mercado de crédito. Agora, a situação é diferente. Não há falta de crédito, há muita oferta. O que está faltando por lá é demanda por crédito, o que é bem diferente. E isso não será resolvido colocando mais dinheiro em circulação - afirmou.

O governo Lula surfou numa onda de crescimento mundial, aumento do comércio, elevação dos preços dos produtos que o Brasil exporta e aumento do fluxo de investimento. De 2003 até a crise do Lehman Brothers, houve um período enorme de prosperidade. Visto da situação atual, o mundo parecia simples. Hoje, a crise internacional é cheia de sutilezas, riscos, ineditismos.

A economista Monica de Bolle, da Galanto Consultoria, em artigo no seu blog com o sugestivo título "Help", e a citação da letra dos Beatles, disse que 2010 é o ano dos pedidos de socorro dos países. Ela conclui, depois de falar da crise nas economias maduras, que "o Brasil parece muito distante de qualquer possibilidade de crise", mas alerta que até as recuperações jovens e pujantes perdem a vitalidade "especialmente quando abusam de certas substâncias tóxicas como crédito excessivo e gasto público descontrolado."

Num pano de fundo conturbado, o Brasil vai bem, mas anda contratando riscos demais para uma temporada de instabilidade como a que o mundo vive.
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