terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Egito: entre a democracia e um banho de sangue,ou nem uma coisa nem outra?

Bolívar Lamounier

BLOG DO BOLÍVAR

Eu tenho a firme convicção de que as ditaduras ou quase-ditaduras do mundo árabe têm chances cada vez menores de se sustentar. Podem não cair no primeiro embate, mas os embates vão se tornar mais frequentes.

No caso do Egito, entender o que vai pela cabeça dos manifestantes e da cúpula do governo não me parece ser a pior dificuldade. Os manifestantes pedem democracia. Não sei se têm uma idéia clara do que seja em abstrato a democracia. E com certeza não vão querer discutir conceitos agora.

No momento, o que querem é mudar o modus faciendi político do país, e entendem, creio eu que acertadamente, que o primeiro passo nessa direção é a saída de Hosni Mubarak. Querem um governo no qual possam confiar. Para eles, no momento, democracia é isso.

O atual regime egípcio é do mesmo tipo que o país vem tendo desde os tempos de Nasser: pequenas variações em torno de uma média bastante autoritária por padrões brasileiros.

Lembra o que Juan Linz, um grande estudioso da Espanha franquista, insistia em designar como regime autoritário, em vez de totalitário.

Em regimes autoritários existe alguma competição política – um “pluralismo limitado”, ainda segundo Linz -, com os partidos e o processo eleitoral mantidos sob certo controle. Os sindicatos são controlados pelo governo, o que para nós não é novidade, disso o Brasil também já teve muito.

Resumindo, o regime egípcio não é totalitário (do tipo que prevalecia na URSS e no leste europeu), mas democrático, aberto, competitivo, com certeza também não é.

Por outro lado, seria um grave equívoco confundir o governo presidido por Hosni Mubarak com qualquer das numerosas ditaduras pessoais que tanto infelicitaram a América Latina: os “somozas”, “stroessners” e “batistas” da vida.

Não, o Egito tem uma estrutura de Estado institucionalizada, complexa, despersonalizada, com forte preponderância do Exército. A comparar com países da América Latina, seria mais correto pensar no Brasil dos militares ou no México de até uns 20 anos atrás, quando o PRI (Partido Revolucionário Institucional) ainda dava praticamente sozinho as cartas.

Dentro desse padrão autoritário, o Egito tem sido o que os americanos costumam descrever como um “no nonsense kind of place”. Não se faz de rogado quando entende que é preciso reprimir. Neste sentido, ele tem se mostrado em média muito mais violento que os citados México do PRI e Brasil dos militares. Por causa do terrorismo, desde logo.

Pelo menos em parte isso se explica pelos problemas que enfrenta, bem mais complicados, por causa da geopolítica e dos diversos grupos que volta e meia recorrem à ação armada.

Neste particular, o que logo nos vem à mente é o islamismo radical.

Nunca é demais lembrar que a Al-Quaeda surgiu no Egito, e quanto a isso vale a pena ler o relato de Lawrence Wright no livro “The Looming Towers” (publicado em português pela Companhia das Letras como “O Vulto das Torres”).

Dou como improvável – direi até impensável – qualquer ingerência direta por parte das grandes potências. Elas têm manifestado preocupação, sugerido negociações etc, mas com cuidado para não avançar o sinal.

É óbvio que elas (não só as ocidentais) temem a turbulência e o islamismo radical. Mas o que mais temem é provavelmente a hipótese de algum envolvimento. Se a URSS se deu mal no Afeganistão e os Estados Unidos no Vietnam, no Afeganistão e no Iraque, ninguém será louco a ponto de se meter no Egito, um país muito mais moderno, complexo e difícil.

Do que acima vai dito eu concluo que dificilmente o governo de Mubarak será posto de joelhos ou entrará em colapso. Mas apostar eu não aposto. Enfrentamentos como o que está ocorrendo no Cairo às vezes tomam um rumo inesperado, principalmente se a violência de um lado ou de outro ultrapassa uma margem mais ou menos previsível.

Problemas há muitos, mas o busílis é com certeza o fundamentalismo islâmico. Os observadores parecem concordar em que ele não foi, até o momento, um ator fundamental.

Não tem atuado ostensivamente. Como sua base é basicamente universitária, essa não deve ser uma avaliação difícil de fazer.

Mas os observadores tampouco acreditam que esse relativo recolhimento dos fundamentalistas vá se manter se houver uma radicalização maior e uma real chance de vitória contra as forças da ordem.

Se o desfecho for alguma forma de democracia, o islamismo será sem dúvida uma grande senão a maior fonte de dificuldades, seja pelo fundamentalismo radical, seja pelo caráter teocrático de sua visão política.

A verdade é que o islamismo moderado – por mais que discorde do fundamentalismo violento, por mais que o tema e condene seu recurso alucinado à violência -, também nutre muitas e muitas reservas acerca da democracia no sentido ocidental do termo.

Concluindo, eu poderia então reiterar o meu desejo de ver um Egito democrático, mas sou obrigado a admitir que o país não tem tradição democrática e que ele enfrenta um conjunto de circunstâncias assaz adverso. Sobre não ter tradição, sim, eu bem sei que sem começar a andar, ninguém chega a lugar algum. O problema é o efeito somado da falta de tradição com o assustador conjunto de problemas que está se configurando.

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