domingo, 6 de fevereiro de 2011

A ''socialização'' do Orçamento


O Estado de S. Paulo - 04/02/2011


Entra governo, sai governo, as relações entre o Executivo e o Congresso Nacional são determinadas cada vez mais pela queda de braço em torno das emendas parlamentares ao Orçamento da União. Para o deputado típico - cuja carreira depende antes de tudo de sua aptidão para ser um bem-sucedido vereador federal -, arrancar do Tesouro os recursos para a obra que propõe seja erguida no seu reduto eleitoral é a primeira de suas preocupações ao longo do mandato. Para o Planalto, que pode ou não levar à prática o que prevê a peça orçamentária - porque ela o autoriza, mas não o obriga a realizar os gastos estipulados -, o atendimento desse tipo de demanda é talvez a mais valiosa das moedas de troca de que dispõe para obter a fidelidade dos políticos. Em votações polêmicas, mas de interesse do governo, o grau de satisfação (ou insatisfação) pessoal dos deputados pode contar mais até do que a sua filiação a um dos partidos da coalizão majoritária. Em cada caso, os líderes da base são os primeiros a chamar a atenção dos interlocutores da Presidência para o imperativo de "tratar com carinho" os pleitos dos legisladores.

O sistema permite toda sorte de manipulação do gasto público, à revelia do interesse geral da sociedade - mas ainda é o menor dos males, em comparação com a alternativa que se esboça na Câmara: a instituição do Orçamento impositivo, com o que, como o nome indica, o governo teria de cumprir ao pé da letra, ou melhor, dos números, o que consta da Lei Orçamentária aprovada para o exercício. Em tese a mudança produziria um notável avanço administrativo e um ganho de seriedade para o uso dos recursos do contribuinte. Não é isso a que se visa, porém. O que move os políticos é algo incomparavelmente mais prosaico - o efetivo pagamento de suas emendas. Se dependesse da maioria deles, decerto o Orçamento continuaria a ser autorizativo no que diz respeito aos dispêndios projetados pelo Executivo, mas impositivo em relação aos desembolsos originários do Congresso. Seria o equivalente a entronizar a pulverização dos recursos federais em obras que não se inscrevem em um plano nacional, ou mesmo regional, de prioridades, mas servem às ambições eleitorais de seus autores.

Na versão do novo presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia, do PT gaúcho, as emendas parlamentares representam nada menos do que "a socialização do próprio Orçamento". Como se a peça não fosse o resultado de decisões de governantes livremente eleitos - logo, credenciados a escolher no que e quando gastar o dinheiro do povo -, ele sustenta que as emendas "dão as condições de dialogar com as necessidades diretas dos cidadãos e de transformar a decisão sobre o Orçamento em um processo democrático mais amplo". Sintomaticamente, a liberação compulsória dos gastos com as emendas também foi a principal promessa do deputado Sandro Mabel, candidato avulso ao posto conquistado por Marco Maia com o apoio da presidente Dilma Rousseff. Sintomaticamente, Mabel arrebanhou o voto de 105 colegas - mais do que se esperava, embora longe dos 375 obtidos pelo petista. Este, ao empunhar a bandeira do seu adversário, se fez porta-voz de uma corporação aparentemente disposta a testar a nova chefe do governo.

A primeira vice-presidente da Câmara, Rose de Freitas, do PMDB capixaba, fez coro com Maia. (Justiça se lhe faça, ela é defensora histórica do Orçamento impositivo.) "O deputado apresenta a emenda e depois ela é selecionada por critérios absolutamente políticos", criticou. "Não pode ser assim." Os fatos lhe dão razão. Conforme este jornal revelou ontem, no mês passado - às vésperas, portanto, da eleição para o comando da duas Casas do Congresso - o Planalto afrouxou os cordões da bolsa para afagar os políticos. O governo soltou R$ 148 milhões para emendas parlamentares, 17% a mais do que em janeiro de 2010, quando não havia nenhuma eleição legislativa pela frente. Os partidos da base, a começar do PMDB, foram os principais beneficiados. Os da oposição ficaram com as migalhas.
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