segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Intelectuais e poder

Roberto Romano
O ESTADO DE S. PAULO

Quem se importa, hoje, com indivíduos e grupos "intelectuais"? No pretérito, escritores, filósofos ou cientistas eram combatidos, aceitos ou silenciados pelos regimes políticos, igrejas, patrões ou operários. É imenso o rol dos pensadores, de Erasmo a Bertrand Russell, envolvidos em problemas humanos candentes. No século 20, manifestos assinados por acadêmicos valiam programas políticos e competiam com encíclicas. Daí a estranheza escandalizada quando os "grandes nomes" silenciavam em situações de injustiça, como nas tiranias de esquerda ou direita.

O totalitarismo domou intelectuais famosos e fez do seu discurso propaganda ou hipocrisia. O realismo enfraquece a mente mais brilhante, nela obnubila o sentido ético e moral. No Brasil, O Pasquim criou o slogan exato para quem seguiu a ditadura: "Eu preciso sobreviver, entende?" O periódico espelha a reflexão de Elias Canetti em Massa e Poder. O Prêmio Nobel comenta a conivência entre autores e governo. O poderoso e seus áulicos preferem guardar a própria vida, em detrimento dos outros seres humanos. Para eles não existem família, amizade, partido ou formas religiosas, tudo o que fazem tem por alvo alongar a sua permanência na ordem pública, vampirizando todos ao seu redor.

Certeira analogia é feita por Canetti entre poderosos e intelectuais maníacos da glória. Para eles, as demais criaturas "não têm outra razão de viver senão a de pronunciar um nome muito determinado (...). As diferenças entre o rico, o detentor do poder e o famoso podem ser resumidas mais ou menos assim: o rico coleciona montes e rebanhos. No lugar destas coisas está o dinheiro. Os homens não lhe interessam; para ele é suficiente o fato de poder comprá-los. O detentor do poder coleciona homens. Os montes e os rebanhos nada significam para ele, a não ser que necessite deles para a aquisição de homens. Mas ele deseja homens que vivam, para arrastá-los ou para levá-los consigo à morte. (...) O famoso coleciona coros. Destes quer escutar apenas o seu nome. Eles podem estar mortos ou vivos, ou podem nem ter nascido ainda; tudo isto lhe é indiferente. Basta que sejam numerosos e tenham sido exercitados em repetir seu nome".

O poderoso que busca a sobrevida e o intelectual sedento de fama podem empreender boas e belas coisas: surgem os estadistas e os escritores imortais, que, segundo Canetti, alimentam a humanidade. A maioria dos governantes e acadêmicos, no entanto, é bem representada por líderes como Vargas e Sarney (ambos da Academia e, portanto, imortais...), beneficiários da censura imposta aos seres comuns.

Intelectuais do século 20 levantaram-se contra tiranias, mas também serviram aos poderosos, pouco importa a cor do príncipe, se parda ou rubra. "Não são aplausos que faltam aos intelectuais, mas sim votos aos partidos que eles apoiam (...). Uma coisa é formar o discurso político, outra é ter poder sobre a vida pública" (Gerard Lebrun, Quem Tem Medo dos Intelectuais?). Após a 2.ª Guerra, muitos intelectuais aceitaram viseiras (políticas, religiosas, econômicas), tentando colocar idênticos tampões na opinião pública. Imaginar "bons" escritores em luta contra "bandidos" (na direita ou na esquerda) é lenda que impede entender o reino animal do espírito, nome dado por Hegel à "comunidade" dos cerebrinos.

No Brasil de agora, emudecem os que parolavam sobre ética e serviço ao povo.

As bases militantes acusam suas direções, escondendo de si mesmas o fato de que os dirigentes não agiriam com desenvoltura se tivessem recebido críticas... dos intelectuais. O "bom acadêmico" (como o bom selvagem) contenta-se com penduricalhos (uma assessoria ou cargo honorífico), mas recolhe as ordens dos superiores e as justifica para o público.

Boa parte dos universitários fica de joelhos e usa truques para não atacar a falsa República brasileira. Fingem não ler péssimas notícias, ignoram o privilégio de foro, os lobbies informais, os caixas 2, as pressões corruptas no Estado e na sociedade. Eles antes falavam demais porque, ainda citando Lebrun, "a crítica das instituições e dos privilégios sempre terá mais atrativo do que a banal apologia da ordem estabelecida". Seu vício anabolizante se encontrava na denúncia. Como não podem mais desmascarar, humilhar, destruir inimigos de seus partidos e devem preservar, blindar, adular a própria grei, eles se ocultam no tíbio silêncio. Se os abusos dos três Poderes são gritantes, o dever manda apontar ao público o que se passa nos gabinetes, mesmo à custa de processos judiciais, prisões, exílios, solidão. Quando Voltaire denunciou o caso Calas, não recebeu apoio da sociedade. Ao escrever o tremendo Eu Acuso, Zola não se tornou popular. No tribunal sobre o Vietnã, Sartre e Bertrand Russell recolheram apupos.

Os intelectuais arvoravam mentirosa independência política. Hoje, o seu máximo empenho é assinar listas de apoio eleitoral ou em defesa própria.

Muitos deles passaram oito anos criticando à socapa o governo Lula e, na bacia das almas, assinaram manifestos em favor de sua candidata. Na outra margem, muitos se acomodaram, deixando o candidato oposicionista à deriva.

Eles precisam sobreviver, entende? Bolsas de estudos, recursos de pesquisa, publicação de livros e artigos justificam as zumbaias dos famosos (outros nem tanto) dirigidas aos governantes. Seguir exércitos fortes, no Brasil, traz popularidade, verbas e verbo. É o tempo das vivandeiras, agora no reino do espírito. Os "intelectuais orgânicos", no Brasil e no mundo, mostram para que servem: universalizam slogans em favor dos palácios. Eles são apenas a caricatura piorada de Glauco e Trasímaco.

Filósofo, professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é autor, entre outros livros, de ‘O caldeirão de medeia’ (Perspectiva)
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