Carlos Lessa
Valor Econômico
Fiquei estupefato com os debates dos candidatos Dilma e Serra no segundo turno das eleições passadas. Fui professor dos dois. Com eles tive períodos de convivência em situações diferentes e afirmo que são pessoas extremamente inteligentes e economistas bem preparados e informados. Meu estupor foi porque nenhum dos candidatos sequer citou a crise mundial; a crise, suas potenciais repercussões e as defesas que acionariam não inspiraram uma palavra. O Brasil dos debates foi uma ilha de estabilidade no temporal da globalização, em confusas desmontagens.
À primeira vista, a presidente Dilma assumiu obedecendo a um preceito: não se mexe em time que está ganhando. Manteve todos os pactos e utilizou os quadros do presidente Lula. Saiu Henrique Meirelles e entrou Alexandre Tombini, que é especialista em modelo de metas de inflação e inaugurou sua gestão com a "novidade" de elevar a taxa primária de juros.
A crise que está aí apresenta:
- bancos americanos inflados de ativos podres. Conheço a estimativa de US$ 1 trilhão cujo destino seria virar cinzas;
- bancos europeus da zona do euro com títulos de dívida soberana de países europeus que o Banco Central Europeu (BCE) não assume como fez o Federal Reserve (Fed, banco central americano) ou seja, muitos bancos europeus também têm ativos que podem virar pó;
- em toda a Europa prevalecem políticas fiscais contracionistas;
- o desemprego norte-americano continua elevado e as injeções de dólares - US$ 600 bilhões de Barack Obama - parecem ter-se dirigido, em grande parte, para a Bolsa de Mercadorias.
A inequívoca prosperidade da esfera asiática e os juros baixos estão alimentando uma próspera elevação dos preços das commodities. O petróleo está cima de US$ 90 o barril e a crise política das ditaduras árabes já empurrou o barril para acima de US$ 100 (este é o preço-chave para uma estagflação). A alta dos preços das commodities agrícolas, em um ano, foi de 39,2% e seu efeito é letal sobre a inflação do padrão de vida dos países pobres. As commodities não agrícolas aumentaram 93,3% no mesmo período.
A liquidez global, insuflada pelo Fed, garantiu dinheiro barato para a especulação nos mercados futuros de commodities. O Brasil, pelo seu ângulo de Velha República, se beneficia com a alta das commodities, porém o Brasil neoliberal - que acabou com estoques estatais reguladores de alimentos e desativou o imposto de exportação - não defende o poder aquisitivo de sua população pobre. A alta dos preços dos alimentos golpeia o orçamento das famílias até três salários mínimos. A esse respeito, o Banco Central pode dizer: "não é minha a culpa da ressurgência inflacionária".
O pragmatismo europeu estatiza bancos quando seus ativos estão virando pó. A Irlanda acabou de fazer isso. Em toda a Europa, a partir da liderança francesa, se discute a necessidade de reduzir o preço dos alimentos importados e das commodities. Quando o mercado incomoda, o neoliberalismo é colocado no armário. Creio que Brasil e EUA paralisarão fundos mundiais de regulação de preços de commodities, porém veremos muitos países europeus instalarem seus fundos regulatórios.
O caso da Tunísia, onde a população se revoltou pela alta de preços de alimentos, está seguido pelo Egito à beira de uma guerra civil, com componente religioso, que poderá fazer prosperar um incêndio no Oriente Médio. Afinal, é um país de enorme importância para a região islâmica. Desde logo, os banqueiros já preveem uma redução dos fluxos de investimento no Oriente Médio e na África.
O presidente Tombini quer evitar um fluxo excessivo de capital-cigano para o Brasil. Entretanto, ao elevar o juro, faz movimento (em princípio) simpático a esse tipo de capital. Afinal, o déficit de transações correntes estaria se aproximando de 8% do PIB brasileiro e começa a circular uma estimativa de necessidades em torno de US$ 70 bilhões para fechar o balanço. Todos sabem como o capital-cigano impacta diretamente os preços dos ativos financeiros e reais.
A tendência brasileira à aproximação com a China tem ângulos a serem considerados com atenção. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) estima que a China fornece insumos a 21% das indústrias no Brasil e avalia que 41% das grandes empresas no Brasil e 32% das médias sofrem concorrência pesada de produtos chineses. Entre 2006 e 2010, informa o Valor, 45% das indústrias brasileiras expostas à concorrência com importados chineses perderam participação no mercado doméstico. Das indústrias exportadoras do Brasil, 67% perderam clientes e consumidores no exterior para fornecedores da China.
Sem o pragmatismo europeu, que deixa de lado suas convicções e lança mão de expedientes para defender seu povo e sua economia, cabe a pergunta: o que o Brasil está fazendo? Tenho a impressão que o presidente Tombini quer dar um tombo no sistema de vendas ao consumidor a prazos hiperlongos. Aparentemente, está adotando medidas "prudenciais" para dificultar crédito às famílias além de 24 meses. Se assim for, o BC está emitindo um sinal contra o que foi "a galinha dos ovos de ouro" do sistema bancário nacional em um festival onde houve venda financiada de veículos em até 90 prestações sem pagamento inicial. Sem dúvida, para o presidente Tombini, mata-se a inflação com a paz de cemitério, ou seja, reduzindo a demanda das famílias e, por extensão, os investimentos privados.
Espero que a presidente Dilma, na qualidade de economista, esclareça se o corte pretendido do gasto público será acompanhado de uma política de contenção do endividamento familiar. É um pragmatismo que não defende o povo. Seguirá com a inflação, e o povo sem ter o gosto de se endividar pesadamente para comprar algum objeto de desejo.
Carlos Lessa - é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES.
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