FERNANDA TORRES
VEJA - RJ
Há dez anos, quando meu filho mais velho tinha exatos 6 meses de vida, fui passar um fim de semana com amigos em uma casa na Baía de Angra. O local paradisíaco, na beira da saída de um rio onde era possível catar vôngoles para o macarrão da janta, só tinha um detalhe que eu não posso nem chamar de defeito: da varanda sobre o mar, avistava-se a usina nuclear de Angra dos Reis. Apesar do incômodo que a presença me trazia, passei três dias ótimos, sem pensar em desastres radioativos.
Em uma manhã exuberante de domingo, ouvimos um alarme soar forte e intermitente: UÓÓÓÓÓÓ, UÓÓÓÓÓÓ, UÓÓÓÓÓÓÓ, UÓÓÓÓÓÓÓ... Esperamos a sirene parar, mas ela continuou severa. Nos olhamos com um sorriso amarelo ainda sem querer tomar nenhuma atitude drástica. Um barquinho apareceu a uns 100 metros da casa com um homem de pé proferindo palavras incompreensíveis em um megafone. Nos apinhamos na ponta do píer para tentar decifrar o que mais parecia uma mistura de checo com polonês, mas o conteúdo do alerta continuou indecifrável. Como antropólogos atentos ao comportamento de um símio, arriscamos uma leitura gestual do marinheiro e chegamos à conclusão de que ele tentava nos dizer algo grave.
O alarido estridente, somado ao misterioso aviso, nos fez apostar na possibilidade de um acidente nuclear. Com meu bebê recém-parido no colo e tomada por uma tremedeira incontrolável, comecei a traçar planos para desaparecer dali o mais depressa possível. Para deixar a casa era preciso entrar em uma chatinha, atravessar o canal, chegar ao estacionamento e dirigir em disparada para longe da radiação. A essa altura, eu já estava certa da contaminação.
Acompanhados do UÓÓÓÓÓÓÓ, UÓÓÓÓÓÓÓ insistente, iniciamos a travessia. Eu era, de longe, a mais panicada do grupo, a maternidade recente justificava o exagero. Eu imaginava o porto do continente tomado por uma junta de funcionários da usina munidos de medidores de última geração e vestidos com aquelas roupas de apicultor de ficção científica. E se não nos deixassem abandonar a área? E se ficássemos de quarentena? No caminho, nenhuma aglomeração ou sinal de pânico. Saltamos ainda em estado de tensão, mas ninguém parecia preocupado no porto. Um operário nos explicou que haviam feito uma simulação pela manhã: “A Marinha passou avisando, vocês não ouviram?”.
Ainda sob o impacto da adrenalina da última hora, decidimos abortar o fim de semana. O ser humano esquece com relativa rapidez, mas, depois desse episódio, demorei um bom tempo para visitar Angra outra vez. Nunca mais pisei na tal casa com vista para a hecatombe. Eu não sei como andam o sistema de alerta e as simulações de emergência. Será que investiram em alto-falantes de melhor qualidade?
Quando eu era criança, uma amiga do peito, a Valéria, se mudou do Rio para o litoral sul. O pai trabalhava em Furnas e foi empregado na construção da usina. Hoje, sempre que avisto o complexo assustador em destaque na divina paisagem, penso na minha colega de escola e na surpresa de eu estar viva há tempo suficiente para ser testemunha de um projeto de longo prazo como esse.
Fukushima exemplifica o pavor de morar tão perto de uma geringonça criada para excitar partículas sem botão de liga e desliga. Uma energia limpa com potencial catastrófico. Uma bênção e uma danação. Deus e o diabo na terra do sol.
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