Perigo no ar: as sucessivas ondas de implantação de sistemas de compliance podem reverter a tendência de duas décadas de flexibilização organizacional
Poucas instituições são tão representativas do peculiar sistema social pindoramense quanto os cartórios. Nesses notáveis estabelecimentos, pode-se observar como a terra pátria reinventou os princípios fordistas de organização do trabalho, azedando-os com os temperos locais. No arranjo físico, impera a impessoalidade desajeitada das burocracias tropicais, de racionalidade limitada e nexos acidentais. Aqui e ali, tropeça-se em sucessivas filas, o nosso cativante modo de ordenar os gentios, a denunciar a baixa produtividade do arranjo. Os contatos pessoais privilegiam os princípios sagrados de autoridade em detrimento de noções básicas de gentileza e civilidade. Porém, é na linha de montagem de autenticações e reconhecimento de firmas que se encontra a peça-chave do sistema: o carimbador. Faça chuva, sol ou ambos, lá estará o impoluto, a executar as performances ritmadas e minimalistas que provêem a trilha sonora dos cartórios.
Entretanto, engana-se aquele que considerar o carimbador um espécime organizacional exclusivo dos cartórios, tal qual um mico-leão-dourado em reserva ecológica. Pois ocorre que nesse preciso momento o mundo corporativo recicla organização e métodos, tempos e movimentos, e, com esse revival, o curioso espécime volta às luzes da ribalta. Primeiro vieram as normas ISO, que trouxeram a promessa de nos redimir do caos e introduzir algum controle sobre os manhosos processos empresariais. De prático, incharam quadros, dilapidaram orçamentos e criaram um nicho de trabalho para consultoria, outro para treinamento e um mais para serviços de certificação. À sua imagem e semelhança, vieram as normas ambientais. Em lugar de salvar baleias e pandas, elas trouxeram mais consultores, treinamento e novos certificados. Em contrapartida, espremeram um pouco mais os orçamentos. Então, foi a vez da segurança e da saúde ocupacional. E, em seu rastro, vieram a responsabilidade social, a lei Sarbanes-Oxley e a gestão de riscos.
Em um curto período de tempo, uma onda de selos e certificados, com volume de mar asiático, inundou as empresas. E, para piorar um quadro já complicado, cada um dos sistemas se pretende organismo vivo, a experimentar mutações e adicionar versões a cada mudança de estação. A dimensão da tragédia pode ser constatada pelo número de novos pingentes dependurados nos presidentes de empresas. Todos os sistemas são da mais alta importância e seus evangelistas devem ter acesso direto ao todo-poderoso de plantão.
Fuga? Evasão? As vítimas corporativas não parecem considerar essa opção. Em alguns casos, os selos e certificados são obrigatórios. Alguns mercados funcionam como clubes exclusivos. Os selos e certificados constituem condição necessária, porém não suficiente, para passar pela porta. Ao menos assim rezam as mais populares lendas. Entretanto, no mais das vezes, uma “mão invisível” parece estar por trás das adoções. Não aquela famosa, cunhada pelo prodigioso filho de Kirkaldy, porém uma outra, imperfeita, movida por grupos de consciência pragmática e bolsos ambiciosos, uma mão capaz de induzir ao vício e tornar as empresas dependentes de rituais e honrarias. Vítimas da patologia, muitos executivos patrocinam, ano após ano, a conquista de novos selos e certificados. Eles recrutam especialistas, contratam consultores e gerenciam projetos. Ao final, mesmo que o benefício seja nulo ou pífio, emprestam o sorriso para uma foto comemorativa.
Quem paga o selo e a foto? Primeiro, os próprios donos, sejam eles acionistas, sejam empresários; segundo, os clientes, pelo deslocamento de custos; e terceiro, a própria comunidade e o meio ambiente, pela troca do fato pela ficção. Para os ingênuos, ter um certificado de qualidade significa ter qualidade e ter um selo de responsabilidade social significa ser socialmente responsável. No mais das vezes, a realidade revela cores mais primárias: ter um certificado significa apenas ter um certificado e ter um selo significa apenas ter um selo.
Entre os mais práticos, quem mergulhou no poço sem fundo dos selos e das certificações procura agora uma saída honrosa. A resposta – propõem os especialistas – é a unificação: juntar os vários artefatos em um único sistema, certamente um de paquidérmicas proporções. Com isso, argumentam, a racionalização operaria seus milagres e sinergias seriam geradas. Será? Mais provável é que tenhamos a empresa transformada em um grande cartório e ocorra em definitivo a ascensão triunfante daquele magistral profissional, a martelar seu carimbo para marcar os novos ritmos e rumos da vida corporativa.
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