Paradoxo: o cinema controlado por grandes grupos, não economiza oportunidade para retratar executivos e empresários como malfeitores. Tudo é entretenimento
Quem vai ao cinema sabe exatamente o que vai encontrar. Após os momentos iniciais de criatividade e diversidade, a Sétima Arte ganhou modelo único, que une narrativa realista e foco no entretenimento. Na base do modelo estão enredos fáceis, freqüentemente pontuados por embates entre mocinhos e bandidos. Os mocinhos são indivíduos de bom caráter, balizados pelos mais nobres ideais. Os vilões, imprescindíveis para a existência dos mocinhos, são sujeitos torpes e de caráter oblíquo. Ultimamente, com apreciável constância, vêm se juntando à corja usual de malfeitores cinematográficos alguns animais típicos do mundo corporativo: financistas sem escrúpulos, empresários perniciosos e executivos maquiavélicos.
Syriana, em cartaz no Brasil, é um bom exemplo dessa tendência. No centro da cena estão os senhores da indústria petrolífera. O filme desenvolve-se sobre quatro histórias, a ter como centro nevrálgico um emirado do Golfo Pérsico. A meada começa e se desenrolar quando um dirigente local transfere os direitos de exploração de petróleo, detidos por uma firma texana, para uma concorrente chinesa. Com o revés, a empresa texana funde-se com uma empresa menor, detentora de (suspeitos) direitos de exploração no Cazaquistão. Para garantir a aprovação da fusão, seus executivos mobilizam uma intrincada rede de intrigas e influências. A segunda trama desenvolve-se em torno de um expert em energia, sediado em Genebra, e sua relação com o mesmo dirigente que deflagrou a primeira trama. Do outro lado do espectro econômico, a terceira trama registra a trajetória de um miserável imigrante paquistanês, a enamorar-se progressivamente do radicalismo islâmico. Finalmente, a completar o caleidoscópio dramático, as aventuras e desventuras de um soturno agente da CIA, envolvido em operações irregulares no Oriente Médio.
O diretor Stephen Gaghan utiliza os ingredientes usuais do cinema norte-americano: elenco de estrelas, locações exóticas e ritmo de filme de ação. Porém, pequenas distinções douram a pílula, tais como o uso da câmera na mão, os enquadramentos deslocados e a edição fragmentada. Com isso, o espectador sente-se à margem dos eventos, sem informação para entendê-los ou influenciá-los. O enredo é pura teoria conspiratória. Todavia, também nesse aspecto há renovação. No lugar de planos mirabolantes, o que se assiste é o desdobrar incessante de golpes e contragolpes, geridos por redes instáveis e imprevisíveis. Qualquer semelhança com a realidade pode ser mais do que mera consciência.
Syriana afilia-se a uma antiga tradição no cinema. Segundo Martin Parker, da Universidade de Leicester, no Reino Unido, desde sua origem, a indústria do entretenimento retrata empresários como vilões. No início, as grandes companhias eram máquinas satânicas a triturar operários. Seus proprietários eram balofos sem alma, a dobrar ossos e vontades. Isolados em seus arranha-céus, eles atentavam contra sindicatos e manipulavam governos. Metropolis (1926), A Nous la Liberté (1932) e Tempos Modernos (1936) são produções sintomáticas dessa fase.
A partir da década de 70, no entanto, a tendência fica mais forte. Em Rollerball (1975), o herói é pressionado por um executivo ganancioso, quando se recusa a participar de uma luta particularmente violenta (e lucrativa). Em um dos filmes da série Aliens (produzida a partir de 1979), a heroína Ripley é repreendida por ter destruído uma nave infestada pelos gosmentos alienígenas, sem perceber o valor do “investimento perdido”. Na série Terminator (produzida a partir de 1984), por detrás das maldades que ameaçavam encerrar a errante trajetória humana sobre a Terra estava uma corporação. Em Robocop (1987), o herói Murphy é um rebento (anômalo) de uma empresa inescrupulosa. Meio homem, meio robô, ele se insurgirá contra seus malévolos criadores e salvará a cidade.
Naturalmente, as estripulias corporativas vão bem além das obras de ficção científica. Em Wall Street (1987), o vilão Gordon Gekko é um financista de filosofia clara (“ganância é bom”) e métodos tortuosos. Silkwood (1983) e Erin Brockovich (2000) retratam heroínas inflexíveis, que expõem as hediondas redes de corrupção, que envolvem políticos e empresas contra o interesse público. A lista é longa e variada.
Paradoxalmente, o cinema é há muito tempo dominado por grandes corporações. O sistema produtivo é fluído e fragmentado, mas o controle sobre o que é produzido, distribuído, promovido, visto e comentado está nas mãos de grandes empresas. Conteúdos críticos, como se vê, podem ser transformados em gordas bilheterias. Isso é, afinal, o que importa.
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