quarta-feira, 16 de março de 2011

A TERRA DO NÃO


Dentre os pitorescos traços do comportamento organizacional pindoramense está uma crônica dificuldade para dizer não


Em uma passagem por São Paulo, o escritor Mia Couto brindou sua platéia com pérolas moçambicanas. O autor de O Outro Pé da Sereia observou que seus conterrâneos têm dificuldade para dizer não, como se a negação representasse uma forte desavença. Certa vez perguntou a um pescador se a maré estava a subir e colheu a seguinte evasiva: “Sim, está a subir, mas já começou a descer”. D’outra ocasião, exercia atividades de biólogo em uma praia e avistou um pássaro. Interessado, perguntou a um nativo próximo: “Qual o nome daquele pássaro?”, ao que o interlocutor respondeu: “A esse pássaro nós aqui chamamos de sapo”. Em um terceiro evento, perguntou a um produtor, beneficiado por uma determinada política pública, se sua vida havia melhorado, ao que o dito produtor retornou: “Está a melhorar a vida, mas está a melhorar muito mal”.

Moçambique não tem apenas a língua e a colonização portuguesa em comum com Pindorama. Os habitantes daqui e d’acolá parecem intimidados pela possibilidade de terem de dizer não. Nos trópicos sul-americanos, como na África Austral, dizer não parece ser um convite ao constrangimento. Se não for acompanhada de mesuras e compensações, a temerária conduta poderá colocar em risco amizades e relações profissionais, ou despertar sentimentos de vingança. Qual é a raiz? A primeira hipótese, obviamente, é o passado colonial. Sociedades coloniais são assimétricas. Moçambique livrou-se do jugo há três décadas; Pindorama, há quase dois séculos, mas ainda não se emendou.

“O projeto estará pronto até o fim do mês?” “Certamente.” “O carro estará reparado até o fim da semana?” “Sim, sem sombra de dúvida.” Naturalmente, não se pode tomar tais respostas por seu valor de face. Tais respostas significam que, findo o prazo, os assuntos apenas começarão a ser considerados. A chance de os trabalhos serem terminados no momento prometido é, como se sabe, remota ou nula. 
Como resolver tais situações? O prezado leitor poderá apoiar-se na notória Teoria X e pressupor que o homem é um ser ladino e ardiloso. Então, esbravejará, gritará e ameaçará. Resultado: será tomado por neurótico, antipático e workaholic. Ou poderá adotar a Teoria Y e pressupor que o homem é um ser confiável e cooperativo. Então, tentará seduzir e cooptar. No entanto, qualquer que seja a estratégia, o projeto e o carro não ficarão prontos no prazo. Onde o “não!” é tabu, o “sim” se transmuta em “talvez, quem sabe...”

Em Pindorama, as corporações combinam intensas relações pessoais e cordialidade. As teias de relacionamento pessoal, tecidas nas entranhas das corporações, colocam em primeiro plano a preservação da harmonia. Discordâncias podem ser tomadas como desavenças. Impera, por isso, uma cordialidade de fachada, alimentada antes pelo temor do que pelo respeito. Nas empresas locais, expor discordâncias e fazer críticas profissionais é colocar em risco a relação e, freqüentemente, o próprio pescoço.

Outra explicação para a dificuldade em dizer não é a concentração de poder de decisão no topo da pirâmide. Para os habitantes das bases, o sim é a linguagem corriqueira e o não pode ser interpretado como rebeldia indesejada. Para os profissionais pindoramenses, é muito difícil contradizer o interlocutor, especialmente quando este está um ou mais degraus acima na pirâmide corporativa. Com isso, conflitos reais ou imaginários são diligentemente evitados. Mesmo diante de erros patentes ou situações absurdas, a regra implícita recomenda contemporizar e circundar.

Para os indivíduos e para as organizações, a ausência do não tem conseqüências importantes. Indivíduos que não sabem negar solicitações e convites atolam-se em atividades secundárias. Eles (e elas) invadem, a trabalhar, noites e fins de semana, estouram prazos e orçamentos, comprometem a qualidade do trabalho e criam úlceras e inimizades.

Nas empresas, a ausência do não também pode provocar conseqüências nefastas. Conflitos são inerentes à vida corporativa. Explicitá-los e tratá-los, de forma aberta e saudável, é parte da ação gerencial e pedra fundamental para a evolução. Negar conflitos alimenta um ambiente de falsa harmonia e inibe a percepção de problemas e ameaças. A longo prazo, tal comportamento pode comprometer resultados e colocar em risco a sobrevivência da organização. Tomar, à primeira vista, sapos por passarinhos não é grave. Entretanto, deixar de negar a natureza evidente do batráquio pode ser o primeiro passo para a esquizofrenia. 


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