CRISTIANE OLIVIERI
FOLHA DE SÃO PAULO
As notícias, quase sempre bombásticas, sobre o uso dos recursos da Lei Rouanet geram, normalmente, indignação da sociedade e a ideia de uso indevido.
Notícias como a do blog da artista Maria Bethânia vendem a necessidade de mudanças urgentes. Mas, com certeza, não será com a decisão imperativa do governo, parcial porque essencialmente política, que alcançaremos essa melhora.
Hoje, cada projeto é analisado por um parecerista técnico e aprovado por um conselho formado por representantes da sociedade civil e do governo. A análise não é de mérito, mas sobre adequação à lei e viabilidade financeira.
Em qualquer processo de seleção, é inevitável que sejam contemplados projetos não unânimes, toscos ou até mesmo discutíveis. Mas a excelência, não só da arte, não se faz com a aplicação de fundos em projetos perfeitos (quem os definiria, afinal!?). É um investimento de risco. A cultura é a medida e o espelho de uma sociedade e se constrói pela contribuição de todos, da inclusão dos unânimes e dos estranhos, da aceitação do oposto.
Não podemos mediar as escolhas pelo ponto de vista de uma classe, de um segmento ou de um governante de plantão.
O governo é feito de pessoas, com visão de mundo, apoiadores, parceiros e oponentes. É parcial, porque tem objetivos políticos.
Não pode ser colocado acima do bem e do mal. Na verdade, a história mostra que os governantes, geralmente, criam balcões para os amigos do rei. O processo de seleção existente é muito mais eficiente que decisões governamentais, com viés político partidário.
A mesma lei que aprovou o blog da Maria Bethânia aprovou também diversos projetos de formação de artistas, de inclusão de crianças e jovens pela arte, de institutos e programas culturais gratuitos, de preservação de patrimônio etc.
Cada um de nós terá razões para apoiar ou contestar essas decisões, mas não cabe ao processo de seleção excluir uma proposta de vídeos de poesias, disponibilizados on-line, gratuitamente, apenas porque envolve profissionais reconhecidos. Seria preconceito. Cabe sim, uma análise orçamentária e a garantia da distribuição democrática de seu resultado.
É importante também acrescentar que a discussão sobre projetos beneficiados é praticamente exclusiva da cultura. A maioria dos benefícios fiscais praticada pelo governo federal nem sequer tem processo de análise. São todos concedidos em atacado, como a redução dos impostos sobre venda de veículos ou de eletrodomésticos da linha branca. Mas, para esporte e cultura, implantou-se a análise do varejo.
E é bom frisar que, em 2009, a renúncia fiscal total para cultura representou 1,26% de todas as renúncias, enquanto os setores de comércio e serviços ficaram com 30,70%, e a indústria com 19,89% (ou seja, 50,59% do total!). E ninguém discute a pertinência ou a aplicação individual desses recursos pelo governo, muito mais robustos e suscetíveis a lobby.
A Lei Rouanet é ferramenta relevante para a produção cultural e para o público, que pode ter acesso às mais diversas produções, gratuitamente ou com preços populares, conforme as novas regras implantadas. Além disso, tem selecionado projetos relevantes.
O governo já fiscaliza o processo geral. Não haveria nenhum ganho para a sociedade em conferir-lhe também o poder de escolha.
CRISTIANE OLIVIERI, advogada, é mestre em administração das artes pela Universidade de Boston (EUA) e em política cultural pela ECA/USP.
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