DENIS LERRER ROSENFIELD
O Estado de S.Paulo
O debate sobre a revisão do Código Florestal, que se intensificará nas próximas semanas, está sofrendo um tipo de contaminação - eu diria de poluição ideológica - que falsifica os termos mesmos da questão. Clivagens totalmente equivocadas são produzidas ao sabor das circunstâncias que atingem dimensões morais, sociais e políticas. Todas se articulam em torno das palavras "ruralistas" e "ambientalistas", empregadas por certos formadores de opinião como se simplesmente descrevessem a realidade, quando, na verdade, a deformam.
Do ponto de vista moral, os "ambientalistas" se colocam numa posição moralmente superior, como se fossem proprietários do "dever ser", dos valores que deveriam nortear a sociedade e o Estado. Produziram, para os inadvertidos, tal simbiose com as palavras "natureza" e "moralidade" que, muitas vezes, fica difícil se colocar como seus adversários. A razão é evidente. Os que seriam contra a sua posição seriam, por definição, contra a "natureza" e contra a "moralidade". Ou seja, o seu comportamento e as suas posições seriam "desinteressados", essa suposta "isenção" se transmitindo a ONGs nacionais e estrangeiras, assim como a ditos "movimentos sociais". Financiamento estrangeiro de ONGs, concorrência de produtores rurais e empresas do agronegócio estrangeiras, governos de outros países, posições esquerdistas dos movimentos sociais que atuam como organizações políticas desaparecem num passe de mágica, como se a moralidade fosse, neles, incorporada.
A própria palavra "natureza" tem várias acepções, pois é dita das mais distintas maneiras. Tomemos o seguinte exemplo. Para um francês e um alemão, valendo essa formulação para qualquer país europeu, tão amigáveis em relação ao meio ambiente, a palavra floresta designa bosques que são utilizados para passeios, piqueniques e encontros familiares. Assim, a "floresta" de Fontainebleau, na França, ou a "floresta" negra na Alemanha, tão apreciadas, são "florestas" antrópicas, produzidas pelo homem. Outros exemplos poderiam ser dados em regiões produtoras de vinhos, logo de vinhedos, que são também tomados como lugares de contato com a natureza. Isto é, áreas de agricultura são consideradas também como áreas de preservação da natureza.
Em termos ambientalistas, seriam eles devastadores da natureza, que alteraram radicalmente as florestas nativas, as "verdadeiras" florestas. Mas há um estranho silêncio sobre isso, os ambientalistas europeus e brasileiros se irmanando na defesa da "natureza", defendendo a "reserva legal", que seria, evidentemente, válida só para o Brasil. Se a "reserva legal" é uma medida de preservação da natureza, alguns diriam cientificamente "provada", por que não é ela válida universalmente? Por que as ONGs internacionais não lutam pela reserva legal em seus próprios países de origem? Por que a "verdade" científica vale aqui, e não acolá? Por que os europeus e americanos não recriam, com seus meios científicos e tecnológicos, as "florestas nativas"?
Do ponto de vista social, a mesma falsa clivagem entre "ruralistas" e "ambientalistas" se reproduz. O relatório do deputado Aldo Rebelo seria coisa de "ruralistas", se não de latifundiários inescrupulosos. Tomemos um exemplo. No final de fevereiro, a Federação dos Trabalhadores em Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Fetag-RS) lançou um abaixo-assinado defendendo abertamente a revisão do Código Florestal. Observe-se que se trata de trabalhadores em agricultura, agricultores familiares e pequenos agricultores, que estão simplesmente defendendo o seu pão de cada dia. Temem, se não houver a revisão, ser considerados "criminosos" ambientais da noite para o dia. Dedicam-se às culturas de arroz, uva e maçã, por exemplo, feitas, segundo os casos, em zonas de várzea ou em morros, que seriam simplesmente inviabilizadas. Trabalham com a natureza, não se opõem a ela, querendo ser simplesmente reconhecidos em seus cultivos, diria, "naturais". Por que os "vinhedos" daqui são nocivos à "natureza", enquanto os vinhedos europeus são simplesmente "naturais"?
Note-se que a Fetag-RS, assim como outras Fetags no País, se insurge contra a insegurança jurídica, defendendo, inclusive, a segurança alimentar. São contrários à quebra de contratos por meio de legislações ambientais de efeito retroativo e querem que suas propriedades e o seu trabalho sejam reconhecidos por aquilo que já produzem em áreas consolidadas. Na verdade, o relatório do deputado Aldo Rebelo retira todo esse contingente de trabalhadores e de agricultores familiares da zona de ilegalidade. São tratados como pessoas, e não como "criminosos". Ademais, convém ressaltar que sua defesa da "segurança alimentar" os afasta de ditos movimentos sociais como o MST e a Via Campesina, que procuram inviabilizar a economia mesmo de mercado e o direito de propriedade.
Do ponto de vista político, a clivagem "ruralistas" e "ambientalistas" tampouco reproduz a dicotomia entre "direita" e "esquerda", ou base aliada e oposição, como esses últimos pretendem fazer crer. Suas formulações não resistem nem à mais superficial análise da realidade. O deputado Aldo Rebelo é do PCdoB, e um membro da base aliada. Com ele, tanto na comissão quanto fora dela, estão deputados do PT que defendem as mesmas posições. O mesmo vale para os outros partidos, em especial para o PMDB, outro importante partido da base governamental. Logo, a "esquerda" estaria do lado da revisão do Código Florestal, ao contrário do que é sustentado por ONGs e "movimentos sociais". É bem verdade que deputados da base aliada se encontram também entre os adversários do relatório. O PSDB, por sua vez, se encontra igualmente dividido, com parlamentares seus situados em um e em outro lado. Isso mostra simplesmente a inadequação da utilização da clivagem entre "ruralistas" e "ambientalistas", entre "direita" e "esquerda".
O mundo maniqueísta foi simplesmente deixado de lado.
PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS.
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