ROBERTO MACEDO
O Estado de S. Paulo
Já sabia de várias fontes e de observações pessoais que a gastança de brasileiros em suas viagens ao exterior vem aumentando fortemente. Mesmo em viagens por aqui, como nos cruzeiros marítimos em fashion, nossos patrícios estão a gastar lá fora com o fretamento de navios, que também se prestam ao shop-shop (compra-compra).
As estatísticas confirmam a ocorrência do chamado shopping spree, um período de forte gastança, às vezes sem maior reflexão ou mesmo marcado por irresponsabilidade. Conforme dados do Banco Central divulgados em janeiro, em 2010 a conta de viagens internacionais do balanço de transações correntes do País teve um déficit de US$ 10,5 bilhões (!), um valor 88% (!) maior que o saldo negativo ocorrido em 2009, de US$ 5,6 bilhões. Foi o maior déficit desde o início da série de dados, em 1947 (!). Conforme números mais recentes, em janeiro houve outro recorde pós-1947, um déficit de R$ 1,2 bilhão.
A recuperação da nossa economia em 2010 trouxe mais empregos e maiores rendimentos, e também ampliou o desequilíbrio. Mas, mesmo em 2009, no ano mais forte da crise, quando o PIB caiu, o déficit não retrocedeu. Até subiu um pouco, passando de US$ 5,2 bilhões, em 2008, para os já citados US$ 5,6 bilhões, em 2009.
Além de impulsos consumistas e dessa recuperação, há outras razões para o enorme e crescente buraco na conta de viagens. A mais evidente é a taxa de câmbio entre o real e o dólar, que há tempos revela uma grande valorização da nossa moeda. Como resultado, os preços de bens e serviços adquiridos no exterior - em particular nos EUA, onde o shop-shop de brasileiros é mais evidente - atingiram valores mais baratos do que aqui. Há também a sequência de estações do ano, marcadas naquele país por fortes liquidações ao final de cada uma, que estimulam os visitantes brasileiros a comprar. Por exemplo, agora é época das sales de inverno, da qual os brasileiros se aproveitam para se agasalharem para o que aqui vai chegar.
Acrescente-se a escala de produção e comercialização, muito maior naquele país - o que reduz custos -, e também sua maior abertura às importações, com destaque para as chinesas, que com seus preços atraentes e qualidade aprimorada reduziram a antiga resistência ao hoje onipresente "made in China", que nos EUA alcança até cartões de Natal. Aqui, já não escapam nem mesmo as imagens de Nossa Senhora Aparecida. Como medida protecionista não tarifária, seria o caso de exigir certificação de sua capacidade de também fazer milagres.
Um segundo fator a impulsionar os brasileiros, este pouco percebido, são as diferentes estruturas tributárias do Brasil e dos EUA. Lá preponderam impostos diretos, como os de renda e sobre imóveis. Aqui, os indiretos são dominantes, como o IPI e o ICMS, que (principalmente o segundo) claramente oneram fortemente os preços ao consumidor.
Como resultado, o cidadão que sai daqui para comprar lá está na situação de um "ótimo tributário", pois em comparação leva uma renda menos tributada aqui para adquirir produtos menos tributados lá.
Outro fator é que, nos seus ciclos produtivos e de comercialização, as inovações tecnológicas aparecem primeiro no exterior. Além de atraírem o interesse dos turistas brasileiros, estes também levam listinhas de encomendas de parentes e amigos, quando não de clientes informais.
Para sintetizar os dois últimos fatores, lembrei-me de uma história que circula na internet, que como piada diz que nos EUA há várias inovações que começam com a letra i, como iPod, iPad, iTunes e o iTech em geral, enquanto no Brasil o que temos é iPI, iPVA, iPTU, iSS, iCMS etc. Depois de refletir, deixei de ver nisso uma piada, pois é mais um sintoma do nosso subdesenvolvimento. Cada um inventa o que pode. Às vezes, até o que não deve.
Voltando ao shop-shop, ele alcança tal proporção que se tornou um turismo em si mesmo. Demonstra-o uma pesquisa sobre motivação de viagens realizada entre turistas brasileiros e objeto de matéria publicada no Diário do Comércio de 25/5/2010. Nos resultados, apareceram as compras como motivo mais importante, ficando em posição secundária passeios e visitas a museus.
Seria criticável o comportamento dos turistas? Examinado à luz do enfoque tradicional das finanças pessoais - o de que os consumidores são racionais, bem informados e buscam tirar o máximo proveito dos recursos de que dispõem e dos bens e serviços que adquirem -, eles se comportam como tais. Buscam inovações e decidem com base em comparações de preços. Se por trás destes há distorções de câmbio e de estrutura tributária, não se pode esperar que em lugar de comprar passem a denunciá-las.
Contudo, no enfoque das finanças comportamentais, que aponta equívocos dessa análise tradicional, nossos turistas são vulneráveis a críticas. Entre outros aspectos, por seguirem o que esse enfoque aponta como "comportamento de manada", correndo sem maior reflexão atrás de modismos, de marcas e do "not made in Brazil". Isso além de nem sempre avaliarem adequadamente os custos em que incorrem. Entre eles o da viagem, pois, se a preocupação predominante é o shop-shop, deveriam incluir o custo dela no de aquisição dos produtos com que enchem suas malas e sacolas. Se fizessem isso, não enfatizariam tanto as "pechinchas" de que se gabam.
Questões ligadas ao consumidor dizem respeito ao varejo. No atacado do problema, quem fica mal é a política econômica do governo, à qual cabem a questão cambial e a tributária. Na primeira, ele mostra alguma ação, mas sem ir a fundo. Na segunda, acena com a ameaça de outra i-novação, a de substituir a finada cPMF por um iMF, por tabela estimulando ainda mais o deslumbrante shop-shop de nossos turistas.
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