JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
O ESTADO DE SÃO PAULO
Imagine se o cozinheiro do restaurante onde você almoça não comesse ali por preferir ingredientes de primeira. Se o mecânico que conserta seu carro levasse o dele a outra oficina, mais confiável. Ou se o gerente da sua conta aplicasse o próprio dinheiro em outro banco, onde é mais bem atendido. O que você faria?
Pois quem administra o sistema público de saúde prefere ter um plano complementar para receber atendimento, provavelmente melhor, em hospitais e clínicas particulares. É um direito deles, inalienável.
O único senão é que você também paga para que funcionários do Ministério da Saúde tenham um sistema de assistência médica particular, que lhes permite serem tratados em instalações mais bem equipadas, com menos filas do que as públicas.
Apenas em 2010, o Ministério da Saúde desembolsou R$ 99,3 milhões em pagamentos à GEAP Fundação de Seguridade Social, a título de "assistência médica aos servidores, empregados e seus dependentes".
Supondo-se que os serviços médicos, hospitalares, odontológicos e laboratoriais tenham sido prestados a todos os servidores do ministério, a fatura ficou em R$ 1.885 por cabeça.
O Piso de Atenção Básica à saúde, um dos pilares financeiros do Sistema Único de Saúde (SUS), usa como referência o mesmo valor de despesas por habitante desde 1996: R$ 10. Proporcionalmente, os gastos com a GEAP são 188 vezes maiores.
Fundada em 1945, a GEAP é uma operadora de saúde sem fins de lucro. Segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a entidade funciona na base da "autogestão multipatrocinada".
Multipatrocinada de fato. Os funcionários da saúde não são os únicos beneficiados pela benemerência governamental com o seu, o meu, o nosso.
Nada menos do que 49 órgãos federais - de universidades ao Ministério do Esporte, passando pela Presidência da República e até um hospital universitário - fizeram pagamentos à GEAP pela prestação de serviços a seus servidores em 2010.
Somando tudo, o governo federal desembolsou R$ 223 milhões para pagar por serviços privados de saúde a funcionários públicos federais via GEAP. Isso apenas no ano passado.
Entre 2004 e 2010, a GEAP recebeu a bagatela de R$ 1,8 bilhão dos cofres federais. Foi a segunda entidade sem fins lucrativos que mais recebeu dinheiro público nesse período.
Enquanto o governo tenta cortar gastos e equilibrar as contas, é de se imaginar o que os dirigentes das instituições federais que gastam com a GEAP fariam com centenas de milhões de reais a mais em seus orçamentos. Talvez nem precisassem penalizar a imensa maioria da população cortando outros programas.
É um privilégio ter um plano médico particular em um país onde a saúde é historicamente o setor mais mal avaliado do serviço público. Mas o governo pagar para que quem toca o SUS não use o SUS melhora ou piora o serviço?
Há mais de uma década o Tribunal de Contas da União questiona a legalidade dos contratos entre a GEAP e o governo, sem muito sucesso. Em 2010, o Ministério Público solicitou que os órgãos públicos federais sustassem os pagamentos à fundação.
O imbróglio jurídico se deve à concorrência, supostamente desleal, com outros planos de saúde. Lei de licitações à parte, a novela GEAP x TCU lembra mais uma disputa comercial do que de princípios.
Há uma questão anterior, mais importante: a cultura dos privilégios a poucos com dinheiro de todos. Se há um sistema teoricamente único e público de saúde, por que a União dispersa seus recursos pagando por serviços privados concorrentes? É único só para os outros?
Quando a elite funcional, econômica ou política deixa de usar um serviço público ele só tende a piorar. É assim com a educação, com o transporte e com a saúde.
Se o governo investisse esse dinheiro na rede pública, talvez mais hospitais fossem tão bons quanto o Sarah Kubitschek de Brasília. A Associação das Pioneiras Sociais, gestora da rede Sarah, é a entidade sem fins lucrativos que mais recebe verba federal: R$ 3,4 bilhões desde 2004. Seu serviço é público, gratuito e auditado pelo TCU.
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