quarta-feira, 23 de março de 2011

NEUROSES RENOVADAS



No 2003 corporativo, a depressão dará lugar à compulsão e a paranóia será substituída pelo dramatismo

O que nos reserva 2003? Esta coluna consultou astrólogos e financistas, alquimistas e estatísticos. Decepção! Nada de novo foi revelado, nada além de variações quantitativas: uma guerra, duas tragédias e três escândalos; ou duas guerras, três tragédias e dois escândalos. Tampouco os espíritos econômicos foram claros. Evocados no clímax da temporada da caça ao planejamento estratégico, incorporaram a contragosto e psicografaram o óbvio: um ano difícil!
Então, caro leitor, a saída foi recorrer ao holandês Kets de Vries (o pai do tema) e tentar um exercício sobre a verdadeira base ortopédico-estrutural das organizações contemporâneas: loucuras e neuroses. Como se sabe, de perto, independente das pirotecnias dos relações-públicas e das artimanhas dos comunicólogos, nenhuma empresa é normal.
Eis então que surge uma visão consistente do futuro. Observado o passado, examinadas as tendências e traçados os cenários, revela-se um 2003 com mudanças importantes nas neuroses organizacionais: a depressão dará lugar à compulsão e a paranóia será substituída pelo dramatismo. Em suma: o movimento na ala psiquiátrica continuará o mesmo, porém revigorado em aflições e delírios.
O final de 2002 já assinalava as condições de contorno: depois dos devaneios neon-liberais, surgiu um revival do nacionalismo provinciano, embalado por um otimismo prozacquiano e por um autismo de periferia. Em Terra Brasilis, por mais que uns e outros voem e vejam, a realidade é mantida à margem, constantemente negada pelo medo do novo ou por simples preguiça.

É este fecundo ambiente sociocultural que nutre nossas neuroses organizacionais. Se não há evolução, decerto há mudança. O discurso segue trôpego, e tudo muda para que fique como está.
O ano de 2002 foi um ano de depressões corporativas, com as crises mais graves localizadas na montanha-russa do segundo semestre. Foi um período de sentimentos de culpa e inadequação, de falta de perspectivas e de minguada motivação. Muitos empresários e executivos pareciam desnorteados, à mercê dos eventos, sem capacidade para pensar claramente e inaptos para definir um rumo.
Tudo, claro, por causa das eleições, porque aqui a culpa é sempre do outro. Mas 2003 será diferente e a depressão cederá lugar à compulsão. De neurose renovada, os ex-depressivos adquirirão confiança e focarão, com fibra de sovina, detalhes irrelevantes: cortarão despesas com xerox e cancelarão contratos de estagiários. Velhos dogmas de gestão retornarão travestidos de novidade e a preocupação com detalhes triviais ganhará status estratégico. A fixação pelo próprio umbigo corporativo reinará e um novo boom das normas ISO será celebrado.

Entretanto, 2002 não foi apenas o ano das organizações depressivas, foi também o ano das empresas paranóicas, aquelas que desconfiam de tudo e todos. Orgulhosos, seus executivos atiram “filosofia” reciclada no ventilador, como aquele conhecido playboy de Karmann Ghia e bota de vaqueiro. Em 2002, as empresas paranóicas cultivaram sem pudor a hipercompetitividade.
Mas até os paranóicos convictos mudam: em 2003, suas empresas evoluirão na escala das neuroses e se tornarão organizações dramáticas. A atenção exagerada ao próprio umbigo permanecerá: uma vez narciso, sempre narciso. Porém, no lugar da frieza emergirão emoções de dramalhão mexicano e a obsessão por resultados será ultrapassada pela obsessão pela aparência de resultados. Com sorte, Pindorama terá em breve a sua Enron.
Depressiva ou paranóica, compulsiva ou dramática, a vida organizacional continuará a fazer vítimas, e quase todas voluntárias. Por que a complacência com a loucura? É a cognição, caro leitor, a cognição. Veja o mais fiel retrato do País: pendurado na encosta invadida e sustentado por oportunismo de vereador, repousa em equilíbrio instável o insalubre tugúrio. No teto, o patético prato branco mira o céu: um cordão umbilical que liga o nada a lugar nenhum, em geral uma Zona Sul de silicone.
O habitante de Pindorama vive num acampamento selvagem, mas parece sofrer de singular efeito narcotizante, embalado num sonho que romantiza paisagens devastadas, embeleza corpos tortos, ameniza atrocidades, moderniza discursos anacrônicos, superestima talentos frágeis e cultua celebridades sem princípios. Que avancem os rinocerontes! Que prosperem as neuroses! 

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