domingo, 20 de março de 2011

A caixa-preta da energia


Carlos Vainer
O Globo

O recente debate sobre a construção de usinas hidrelétricas na Amazônia começou a levantar a cortina de silêncio que tem mantido a opinião pública ignorante acerca das razões e consequências da política do setor elétrico. Começam a pairar dúvidas quanto à opção inaugurada com Tucuruí, no regime militar, pelo nada saudoso ministro de Minas e Energia Shigeaki Ueki, que começou a fazer da Amazônia uma fonte de energia para indústrias eletrointensivas exportadoras (alumínio, sobretudo). Será de fato a hidreletricidade, como divulgam os arautos do modelo elétrico brasileiro, uma energia limpa e barata? Necessitamos de muito mais informação e discussão, como recentemente voltaram a cobrar Miriam Leitão (O GLOBO) e Washington Novaes ("Estado de S. Paulo"). Inclusive porque, como advertiu o procurador da República no Pará, Felício Ponter Jr, "o setor elétrico no país é uma das maiores caixas-pretas do governo" (O GLOBO, 8/01/2011). 

A inundação de 5,3 mil km2 de florestas nos próximos dez anos, a transformação de nossos rios em escadas de lagos artificiais, a extinção de espécies fluviais de grande valor nutricional e econômico, tudo isso implica em altos custos, muitas vezes inestimáveis. Os desastres ambientais, porém, talvez sejam pequenos se comparados aos desastres sociais que se abatem sobre as populações afetadas. Estima-se que foram cerca de um milhão os deslocados por barragens no país. Nos últimos 50 anos, sofreram com a destruição de suas vilas, cidades, cemitérios e igrejas. Cultivos e criações foram inviabilizados. As reparações foram quase sempre insuficientes para que recomeçassem suas vidas - isto quando receberam alguma coisa. E um capítulo à parte deveria ser consagrado à dramática situação a que têm sido levados grupos indígenas, cujos territórios, meios e modos de vida são sacrificados no altar de um desenvolvimento que não lhes reserva qualquer lugar. 

Novas informações são agora colocadas à disposição do público pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que vem de aprovar relatório elaborado por Comissão Especial que examinou denúncias de violações de direitos humanos no planejamento, implantação e operação de barragens. 

As conclusões do relatório são graves: "Os estudos de caso permitiram concluir que o padrão vigente de implantação de barragens tem propiciado de maneira recorrente graves violações de direitos humanos, cujas consequências acabam por acentuar as já graves desigualdades sociais, traduzindo-se em situações de miséria e desestruturação social, familiar e individual." 

Longo e variado é rol de direitos violados por empreiteiras, empresas energéticas públicas e privadas e órgãos governamentais: direito à informação e à participação, direito à liberdade de reunião, associação e expressão; direito ao trabalho; direito à moradia adequada; direito à educação; direito a um ambiente saudável e à saúde; direito à plena reparação das perdas; direito às práticas e aos modos de vida tradicionais, assim como ao acesso e preservação de bens culturais, materiais e imateriais. Populações indígenas, idosos, mulheres chefes de família, crianças são os que pagam o preço mais alto. 

O CDDPH vai além do diagnóstico e alinha quase cem recomendações para reparar a enorme dívida social contraída com as populações atingidas e prevenir novas violações no futuro. Uma destas recomendações já foi adotada, com a instituição do cadastro socioeconômico para identificação, qualificação e registro público da população atingida por empreendimentos de geração de energia hidrelétrica (Decreto-lei nº 7.342, 26/10/2010). É ainda pouco, mas o relatório e o decreto são passos na direção certa. 

Agora há que exigir do setor elétrico, da Aneel, do MME e do MMA, que as novas barragens, o novo Plano Decenal de Energia e o Plano Nacional de Energia incorporem as recomendações do CDDPH. E que energia e barragens deixem de ser sinônimos de violações de direitos humanos.
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