Os filhos do lixo
"Gravei a tristeza, a resignação, a imagem das crianças minúsculas e seminuas, contentes comendo lixo. Sentadas sobre o lixo.
Uma cuidando do irmãozinho menor, que escalava a montanha de lixo. Criadas, como suas mães, acreditando que Deus queria isso"
Há quem diga que dou esperança; há quem proteste que sou pessimista. Eu digo que os maiores otimistas são aqueles que, apesar do que vivem ou observam, continuam apostando na vida, trabalhando, cultivando afetos e tendo projetos. Às vezes, porém, escrevo com dor. Como hoje.
Acabo de assistir a uma reportagem sobre crianças do Brasil que vivem do lixo. Digamos que são o lixo deste país, e nós permitimos ou criamos isso. Eu mesma já vi com estes olhos gente morando junto de lixões, e crianças disputando com urubus pedaços de comida estragada para matar a fome.
A reportagem era uma história de terror – mas verdadeira, nossa, deste país. Uma jovem de menos de 20 anos trazia numa carretinha feita de madeiras velhas seus três filhos, de 4, 2 e 1 ano. Chegavam ao lixão, e a maiorzinha, já treinada, saía a catar coisas úteis, sobretudo comida. Logo estavam os três comendo, e a mãe, indagada, explicou com simplicidade: "A gente tem de sobreviver, né?".
O relato dessa quase adolescente e o de outras eram parecidos: todas com filhos pequenos, duas novamente grávidas e, como diziam, vivendo a sua sina – como sua mãe, e sua avó, antes delas. Uma chorou, dizendo que tinha estudado até a 8ª série, mas então precisou ajudar em casa e foi catar lixo, como outras mulheres da família. "Minha sina", repetiu, e olhou a filha que amamentava. "E essa aí?", perguntou a jornalista. "Essa aí, bom, depende, tomara que não, mas Deus é quem sabe. Se Ele quiser..."
Os diálogos foram mais ou menos assim; repito de memória, não gravei. Mas gravei a tristeza, a resignação, a imagem das crianças minúsculas e seminuas, contentes comendo lixo. Sentadas sobre o lixo. Uma cuidando do irmãozinho menor, que escalava a montanha de lixo. Criadas, como suas mães, acreditando que Deus queria isso.
Não sei como é possível alguém dizer que este país vai bem enquanto esses fatos, e outros semelhantes, acontecem. Pois, sendo na nossa pátria, não importa em que recanto for, tudo nos diz respeito, como nos dizem respeito a malandragem e a roubalheira, a mentira e a impunidade e o falso ufanismo. Ouvimos a toda hora que nunca o país esteve tão bem. Até que em algumas coisas, talvez muitas, melhoramos. Temos vacinas. Existem hospitais e ensino públicos – ainda que atrasados e ruins. Temos alguns benefícios, como aposentadoria – embora miserável –, e estabilidade econômica aparente. Andamos um pouco mais bem equipados do que 100 anos atrás.
Mas quem somos, afinal? Que país somos, que gente nos tornamos, se vemos tudo isso e continuamos comendo, bebendo, trabalhando e estudando como se nem fosse conosco? Deve ser o nosso jeito de sobreviver – não comendo lixo concreto, mas engolindo esse lixo moral e fingindo que está tudo bem. Pois, se nos convencermos de que isso acontece no nosso meio, no nosso país, talvez na nossa cidade, e nos sentirmos parte disso, responsáveis por isso, o que se poderia fazer?
Pelo menos, reclamar. Achar que nem tudo está maravilhoso. Procurar eleger pessoas de bem, interessadas, que cuidassem dos lixões, dos pobrezinhos, da saúde pública, dos leitos que faltam aos milhares, dos colégios desprovidos, de tudo isso que cansativa mas incansavelmente tantos de nós têm dito e escrito. Que pelo menos a gente saiba e, em vez de disfarçar, espalhe. Não para criar hostilidade e desordem, mas para mudar um pouquinho essa mentalidade. Nunca mais crianças brasileiras sendo filhas do lixo, nem mães dizendo que aquela é a sua sina, porque Deus quer assim.
Deus não quer assim. Os deuses não inventaram a indiferença, a crueldade, o mal causado pelo homem. Nem mandaram desviar o olhar para não ver o menino metendo avidamente na boca restos de um bolo mofado, talvez sua única refeição do dia. E, naquele instante, a câmera captou sua irmãzinha num grande sorriso inocente atrás de um par de óculos cor-de-rosa que acabara de encontrar: e assim se iluminou por um breve instante aquela imensa, trágica realidade.
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Não sei nem o que comentar a respeito de uma situação tão desumana como esta!
ResponderExcluirEu acredito em determinadas razões que podem explicar isso, mas, por serem ligadas à religião, não vêm ao caso aqui.
Mas mesmo assim não me conformo com essas condições às quais essas pessoas sobrevivem! Deus não quer mesmo que isso aconteça, tudo é fruto do mal que causamos a nós e aos outros.
Justamente por falta de Educação/instrução, que muitas pessoas perdem seu referencial e passam a creditar num tal destino provido por Deus - a famosa sina que cada já traz dentro de si...
ResponderExcluirÉ lamentável, mas não são poucas as pessoas que assim pensam e continuam estáticas diante daquilo que o ( ameu ver) governo lhe oferece - a migalha das migalhas.
Deus não quer, Deus nunca quis seus filhos na miséria. Muitas vezes perguntamos, onde está Deus, que não vê tudo isso? Penso que Deus está onde sempre esteve, mas e nós seres humanos, onde estamos? Onde nos colocamos? A responsabilidade sobre tudo isso não é de Deus, é nossa. Nós mesmos criamos tudo o que aí está, e nós mesmos deveríamos resolver... mas preferimos ficar como aqueles filhos irresponsáveis, que saem pelo mundo fazendo a maior desordem e quando se percebem em apuros, vão logo dizendo: "Cadê o meu pai?"... e nunca querem arcar com as consequências dos seus atos. A diferença é que Deus não fica "passando a mão em nossas cabeças" como fazem os pais superprotetores e tão irresponsáveis quanto seus próprios filhos. Deus é verdadeiramente Pai e Ele nos chama à responsabilidade... e é isso o que Ele nos tem feito. Não nos adianta colocar a "culpa" em Deus, se alguém errou (e errou feio), esse alguém somos nós e estamos TODOS, de uma forma ou de outra: vivendo do lixo que nós mesmos produzimos.
ResponderExcluirA sociedade é culpada das pessoas viverem no lixo e do lixo?
ResponderExcluirChega a ser um vergoso nos submetermos a tantas injustiças. Precisamos nos acorda, e não aceitar essa situação calados. Pensar no futuro do nosso país. Para começar vamos eleger representates que realmente possam fazer algo para mudar essa 'realidade tragica' como diz Luft em seu texto " Os filhos do lixo". E não nos submetemos aos discursos enganosos que assolam nestas epocas leitorais.
ResponderExcluirE realmente catastrofico toda essa situaçao,esse quadro terá soluçao apartir do momento que tirarmos a venda dos olhos e nos conscientizar que os principais responsáveis por tudo isso somos nós!o governo também poderia interagir oferecendo melhores condiçoes de vida ,moradia,saneamento basíco infra estrutura.
ResponderExcluirAs pessoas se esquecem de que tem gente que vive do que elas jogam fora,e ficam reclamando porque não tem um carro importado ou um sapato de marca.
ResponderExcluirFalta mais amor no coração das pessoas!
ResponderExcluirJesus jamais estaria de acordo com uma tragédia desta.
ResponderExcluirEle não nos concebeu para que passássemos isso. Ele
prega o amor, a generosidade, a caridade e a maioria
não faz alguma coisa por quê?
Somos alienados e continuaremos assim. Infelizmente o coração chora
e espera que nossos governantes sejam somente piedosos.