O ESTADO DE S. PAULO
Menos mal que o secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, disse dias atrás que "deveria ter a cabeça examinada" quem aconselhasse a Casa Branca a "mandar um grande contingente" para regiões conturbadas no Oriente Médio e na África. Nem grande nem pequeno, é o caso de corrigir, diante da notícia de que Washington decidiu deslocar para perto da costa líbia forças navais e aéreas acantonadas no Mediterrâneo, no Mar da Arábia e no Golfo Pérsico. Além disso, começou a examinar com os seus aliados da Otan estratégias para apressar o fim do regime do coronel Muamar Kadafi, que já perdeu para a insurreição popular desatada há menos de três semanas o controle de cerca de 80% do território, onde se localizam os seus principais campos petrolíferos.
Na segunda-feira, ao participar em Genebra da reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU convocada para suspender a Líbia do organismo e abrir uma investigação sobre as violências da ditadura contra a população desde o início do levante - segundo as estimativas, morreram entre mil e 2 mil civis -, a secretária de Estado Hillary Clinton anunciou que "todas as opções estão na mesa", para não excluir de saída uma intervenção armada na Líbia. Mas fez questão de acrescentar que nenhum dos governos com os quais vem conversando coloca a opção militar "no topo da lista" e que o deslocamento das forças americanas tem a finalidade de dar eventual apoio logístico a missões humanitárias na Líbia.
Que assim seja. O uso de força estrangeira contra Kadafi deitaria a perder tudo o que, na batalha dos valores, os EUA ganharam - sem mover um único dedo - com o vendaval democrático que percorre o mundo árabe, semeando na região uma metamorfose política quem sabe comparável ao desmoronamento do Império Otomano, após a 1.ª Guerra Mundial. Na Tunísia, Egito, Líbia, Iêmen, Jordânia, Marrocos, Bahrein e agora em Omã em nenhum momento se repetiu o ritual até então indissociável das manifestações da chamada rua árabe - a queima de bandeiras americanas. E, em todos esses países, as multidões teriam motivos para denunciar o apoio ocidental às tiranias contra as quais se ergueram.
Em Washington se ouve que a movimentação ordenada pelo governo teria por objetivo, como se fala no Brasil, "botar pressão" sobre o regime líbio atingido desde o último fim de semana por uma sequência de sanções diplomáticas, econômicas e militares, em vias de serem ampliadas pela ONU. Um dos próximos passos poderia ser a abertura de processo contra Kadafi no Tribunal Penal Internacional - criado, ironicamente, contra a vontade dos EUA - por crimes contra a humanidade. A mobilização dos recursos armados norte-americanos na área não se dá, portanto, por nenhum daqueles motivos que levariam seus autores a "ter a cabeça examinada", como diria o secretário Robert Gates - mesmo porque, uma intervenção armada seria tudo que o isolado Kadafi precisa para se aferrar heroicamente ao poder, em defesa de sua proclamada revolução anti-imperalista, infundir ânimo novo nos seus partidários e comprovar a sua litania de que o Ocidente incentiva a guerra civil na Líbia para se apropriar do seu petróleo.
As democracias já têm muito a fazer pelo povo líbio para dar munição ao coronel. Há uma brutal crise humanitária a ser enfrentada nas fronteiras do país com a Tunísia e o Egito, para onde convergem legiões de refugiados. E, se se trata de apoiar os combatentes líbios pela democracia, o desembarque maciço de víveres, medicamentos e hospitais de campanha, em portos como Benghazi e Tobruk, é incomparavelmente melhor do que exibir o revólver. Armas, só a pedido de um governo provisório na Líbia libertada - que ainda não se formou e, depois, precisará ser reconhecido pela comunidade internacional. A invasão americana do Iraque, em 2003, varreu da mesa a opção por ações unilaterais. A ajuda à liquidação da tirania do ensandecido Muamar ("o povo me ama") Kadafi exige o respaldo da ONU e a aquiescência da Liga Árabe e da União Africana. A alternativa será um tiro no pé.
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