quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Juizados especiais

Merval Pereira 

O Globo

Embora a Polícia Militar tenha agido com rapidez e criado uma ouvidoria para receber as queixas dos moradores da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, por eventuais abusos de poder durante a operação de retomada daqueles territórios, talvez essa não seja a melhor maneira de endereçar a questão, devido ao histórico de violência que marca a relação daquelas comunidades com as forças policiais.

A operação atual quebrou esse paradigma, mesmo que existam relatos de pessoas que tiveram suas casas ocupadas com violência ou sofreram prejuízos nas ações policiais.

É inegável que tudo indica que a atitude das autoridades não dá margem a que excessos que tenham acontecido possam ser minimizados ou escondidos da população.

Mas, para continuar quebrando paradigmas e for talecendo a confiança dos cidadãos na atuação das forças militares, talvez fosse preferível que juizados especiais fossem instalados naquelas comunidades.

A vereadora Andrea Gouvêa Vieira, do PSDB do Rio, já havia feito essa sugestão quando a OAB instalou um posto avançado na Vila Cruzeiro, há dois anos.

Os moradores se queixavam da ação truculenta dos policiais e diziam que, para tentar falar alguma coisa contra alguém, no caso em que suas casas eram invadidas e seus objetos, quebrados ou mesmo roubados por policiais, só tinham o vizinho como interlocutor.

A vereadora do PSDB diz que é muito difícil aos moradores dessas áreas acessar o sistema judiciário , e fez uma comparação com a criação dos tribunais especiais nos aeroportos, quando houve o caos aéreo, e que continuam em operação até hoje.

Ela sugeriu à O A B que, para resolver os conflitos ali na Vila Cruzeiro, o melhor seria fazer o mesmo, para que a solução fosse mais ágil, dando mais proteção às comunidades.

Até hoje nada foi feito , e Andrea Gouvêa Vieira acha que este seria o melhor momento para retomar a ideia, para garantir que essa solidariedade entre as forças policiais e a população daquelas localidades não se enfraqueça.

Também Paulo Roberto Mello Cunha, promotor de Justiça há 9 anos, titular do Tribunal do Júri da cidade de São Gonçalo, com especialização em segurança pública e pós-graduação em políticas públicas de Justiça Criminal e segurança pela Universidade Federal Fluminense, reconhece que, desde que o governo do estado começou a implantar uma política de presença constante das forças policiais nas comunidades dominadas pelo tráfico, atendendo ao anseio de vários estudiosos da área da segurança pública, um fenômeno importante vem ocorrendo: a normalização das relações dessas comunidades com o restante da cidade do Rio.

“Sem dúvida, as operações no Complexo da Penha e no Complexo do Alemão tiveram como marcas distintivas a ausência da bravata guerreira que promete mortes e sangue como sucedâneos da segurança pública nas áreas ‘normais’ da cidade”, diz o promotor.

Ele destaca que “ a preocupação com o atendimento médico de feridos, sejam moradores, policiais, ou mesmo criminosos , trouxe a ideia de que a polícia não é um exército combatente, mas uma instituição que presta um serviço público em prol da sociedade como um todo”.

No entanto, ressalta Paulo Roberto Mello Cunha, alguns hábitos permanecem arraigados, citando como exemplo a ausência de mandado judicial para realizar buscas nas residências do Complexo do Alemão e do Complexo da Penha.

Ele acha que a ausência da ordem judicial dificilmente é suprida pela autorização do morador ou pelo estado de flagrante delito.

O problema, lembra ele, é que há várias casas fechadas e abandonadas, para as quais, portanto, não há “morador” a autorizar a entrada da polícia.

Quanto ao “estado de flagrante delito”, o promotor destaca que são cerca de 600 bandidos para 30.000 casas, “o que torna a proporção de casas em flagrante delito ínfima”.

De fato, diz ele, “é o hábito de tratar aquela comunidade como território além — ou aquém — do ordenamento jurídico soberano do Brasil que faz com que pareça dispensável a participação do Ministério Público e do Poder Judiciário na atuação policial”.

Mesmo constatando que a mudança na concepção do que deve ser a segurança pública parece irreversível, “ainda se faz preciso ‘constitucionalizar ’ a atuação das forças policiais em toda a sua extensão”, ressalta Paulo Roberto Mello Cunha, afirmando que seria essencial que fossem montados “mecanismos de controle in loco da conduta dos agentes”, e a utilização de mandados de busca e apreensão, mesmo que coletivos, o que permanece bastante controverso na doutrina e na jurisprudência.

Com isso, ele diz que promotores de Justiça e juízes se aproximariam da realidade e das dificuldades da atuação policial; a eventual responsabilização dequem realiza a busca ou qualquer outra medida seria possível, e a atuação das forças policiais teria respaldo judicial.
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