sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Renda muda o consumo de remédios

Crescimento muda perfil do consumo de remédios
Angela Bittencourt 
Valor Econômico



O ciclo econômico positivo da última década mudou a relação do brasileiro com seu corpo. A busca por a1ívio para a dor deu lugar à preocupação com a bem-estar e a adequação ao ambiente profissional mais competitivo. O Brasil da inflação a1ta e das tentativas de estabilização monetária doía no bolso e nos ossos. Hoje, prevalece o interesse pela serenidade nas decisões e resistência às pressões decorrentes da concorrência.
Analgésicos e anti-inflamatórios que respondiam por 50% dos medicamentas mais vendidos em 1998 caíram a 30% neste ano. Sinal de maior preocupação das mulheres com as perspectivas profissionais, a venda de anticoncepcionais e remédios para distúrbios da tireóide agora disputam posição com a tranquilizante Rivatril no ranking que revela prolongada fidelidade dos brasileiros aos "clássicos" Hipoglós, Buscopan e Neosaldina.



O ciclo econômico positivo da última década não mudou apenas a relação do Brasil com os seus parceiros comerciais e financeiros. Mudou também a relação do brasileiro com o seu corpo. A busca para alívio da dor deu lugar à preocupação com o bem-estar. O Brasil da inflação alta e das tentativas de estabilização monetária doía no bolso e nos ossos dos cidadãos. Hoje prevalece o interesse pela serenidade nas decisões e resistência às pressões decorrentes da competição profissional e também de fracassos. Analgésicos cederam lugar a anticoncepcionais, medicamentos contra distúrbios da tireoide e tranquilizantes.
Superadas as agruras da convivência com a hiperinflação, que consumiu a década de 80 e parte da década de 90, o brasileiro vibra com a expansão da atividade alçada a quase 8% neste ano.

Um mercado interno vigoroso embala esse crescimento com avanços históricos da renda e do emprego que propiciam maior acesso a bens de consumo e também à saúde e aos medicamentos. A velocidade da informação colabora com esse cenário e também acirra a disputa por mais eficiência pessoal e profissional. E desse receituário emergem as preferências de médicos e pacientes. Esses "consumidores privados" brasileiros puxaram as vendas de "remédio de marca" a quase 2 bilhões de unidades em 12 meses encerrados em julho de 2010 - num crescimento de 15% ante os 12 meses anteriores. Mais que o dobro do crescimento registrado pela IMS Health nos últimos anos. A IMS Health, empresa de pesquisa e consultoria para o mercado farmacêutico, atende também a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

"A relação dos ciclos econômicos com o consumo de medicamentos ocorre porque o ambiente é de pressão. Exigência de elevada performance, o que leva a consumo de ansiolíticos, como o Rivotril, que ajudam a enfrentar pressões sociais maiores", afirma o pediatra e toxicologista do Hospital das Clínicas, Anthony Wong. O psicoterapeuta Antonio Carlos Amador Pereira lembra que o fracasso na busca pelo poder também mobiliza as pessoas em direção às farmácias. "Foco muito fechado em dinheiro ou em poder é desestabilizador. O poder traz isolamento. E consequências", avisa.

Analgésicos e anti-inflamatórios que respondiam por 50% dos dez medicamentos mais vendidos em 1998 caíram a 30% neste ano. Indicativo de maior preocupação das mulheres com as perspectivas profissionais, turbinadas pela ascensão a postos de chefia, a venda de anticoncepcionais e preparados para distúrbios da tireoide agora disputam posição com o tranquilizante Rivotril no ranking que revela prolongada fidelidade dos brasileiros aos "clássicos" Hipoglós, Buscopan e Neosaldina. O Puran T4, preparado para tireóide, ocupa a segunda posição entre os "remédios de marca" mais vendidos de 2009 para 2010. "O uso desses preparados, e o Puran T4 é apenas uma das apresentações que estão no mercado, está diretamente relacionado a uma maior incidência de hipotiroidismo desencadeado por situações de estresse, particularmente, emocional", comenta o endocrinologista Meyer Knobel, chefe da Unidade de Tireoide do Hospital das Clínicas e da Faculdade de Medicina da USP. Ele confirma que as doenças da tireoide prevalecem cerca de oito a dez vezes mais em mulheres que homens. "Não existe uma explicação bem estabelecida, mas parece estar relacionada à questão hormonal e genética", afirma.

"A participação reduzida de anti-inflamatórios na demanda dos brasileiros por medicamentos é uma ótima notícia", afirma o ortopedista e professor de Medicina Sérgio José Nicoletti, coordenador do Núcleo de Educação da Saúde da Universidade Federal de São Paulo. Consultor de empresas na área de absenteísmo não planejado de causas médicas (faltas não programadas ou planejadas), Nicoletti afirma que desde os anos 90 o Brasil vem gastando muito com o tratamento e com benefícios previdenciários concedidos a empregados afastados do trabalho em decorrência de diagnósticos de doenças inflamatórias, para as quais não há evidências cientificamente estabelecidas. "Provavelmente, esse tipo de situação contribuiu muito para que a prescrição e o uso de medicamentos anti-inflamatórios, vendidos sem receita médica, tenham mantido esse tipo de medicamento no topo da lista dos mais vendidos nas duas últimas décadas. Como anti-inflamatórios apresentam efeitos colaterais não desprezíveis, a queda de seu consumo é alvissareira e deve diminuir os custos, tanto públicos, quanto privados, decorrentes de tratamento de complicações gastrointestinais e cardiocirculatórias, comprovadamente associadas com esse tipo de remédio", comenta o ortopedista.

Wong está convencido de que existe, sim, relação entre os ciclos econômicos e o consumo de medicamentos, mas não vê relação direta entre esse consumo e aumento de renda. "Os medicamentos são relativamente baratos. Quando alguém sente necessidade, comprará o remédio independentemente do preço. Veja o Viagra. Cada comprimido custa de R$ 30 a R$ 40 e tem homem tomando adoidado. Quando as mulheres querem ficar bonitas também gastam muito dinheiro, pouco importando a crise", comenta o toxicologista para quem a relação direta aumento de renda e consumo de remédios pode ocorrer em países pobres como os africanos. "O Brasil nunca foi um país pobre e está, há 40 anos, entre os dez maiores produtores farmacêuticos do mundo. O Brasil tem também grande diversidade. Já chegamos a ter 9 mil produtos farmacêuticos no mercado."

Antônio Carlos Amador Pereira, também professor de Psicologia da PUC-SP, pondera que seja pelo crescimento econômico efetivo ou uma "bolha" em alguns setores, a necessidade de consumir medicamentos é tão grande quanto de outros bens. "O consumo de remédios indica que as pessoas estão se cuidando mais, tendo acesso a planos de saúde e tendo condições de pagar. Mas não podemos esquecer que existe a automedicação que pode ser um meio mais rápido para satisfazer a necessidade de consumo", comenta Pereira que alerta para mais um estímulo a essa modalidade de consumo: a crença de que medicamentos mais sofisticados serão necessariamente mais eficientes. "O ácido acetilsalicílico parece pouco, ainda que perfeito para algumas situações", diz.

Drogas lícitas ou ilícitas vão atrás de quem tem dinheiro e são associadas, com frequência, a estresse e a status. "É assim com a cocaína", afirma o psicoterapeuta Antonio Carlos Amador Pereira que alerta para o fato de que os pobres estressados vão atrás de bebida. "Ainda assim, com a ascensão social, há uma evolução da cerveja até o uísque. Até o momento em que isso já não é mais suficiente para lidar com ansiedade ou estresse. Esses são os principais fatores que levam ao consumo de medicamentos que foram banalizados. Alguns entram na moda e até caem de moda. É o caso do Lexotan. O Vicodin, por exemplo, é moda nos Estados Unidos. É símbolo de status que é avaliado exatamente pela capacidade de consumo."

Wong, do Hospital das Clínicas, explica que o Lexotan e o Rivotril fazem parte do mesmo grupo de benzodiazepínicos considerados bastante seguros. Ambos pertencem à mesma classe do Valium. "O Lexotan ou Bromazepan, que é seu genérico, ajudam a pessoa a dormir melhor. O Rivotril está um passo adiante. Ajuda a diminuir a ansiedade, a enfrentar pressões e a síndrome do pânico e tem excelente efeito para fobia social."

Esse toxicologista identifica a urgência das pessoas em buscar saídas para pressões e alerta para os padrões de comportamento praticamente impostos a quem deseja trilhar a escala social. "A Ritalina, um anfetamínico muito consumido, tem o efeito da cocaína, pois propicia condições para a escalada rumo ao sucesso. Profissionais bem sucedidos sabem conviver socialmente, dão risada, sabem falar. Para os tímidos, é ainda pior. Parece que socialmente não há lugar para os tímidos. Nos últimos três anos, o consumo da Ritalina cresceu cinco vezes. Hoje em dia, até professoras indicam Ritalina para crianças com déficit de atenção. Mas o que acontece com frequência são os irmãos mais velhos pegarem os comprimidos para fazer bonito na balada."

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