FOLHA DE S. PAULO
A Irlanda é a vítima mais dramática de uma onda de liberalismo que gerou duas grandes bolhas
Vivemos um daqueles momentos da história em que o observador atento pode tirar lições importantes e que escapam da maioria dos analistas. Presos aos lugares-comuns de sempre, esses cronistas do superficial flutuam ao sabor de fatos menores e deixam passar ao largo acontecimentos que vão marcar os dias de amanhã.
Mas há os que, nesses momentos de grande excitação, mostram acuidade analítica e simplesmente dizem: "O rei está nu".
Esse é o caso do colunista do "Financial Times" Martin Wolf. Em uma de suas mais recentes colunas, ele desmoralizou, com muito humor, a chefe do governo alemão, Angela Merkel.
Figura central do drama -ou será uma ópera-bufa?- em que se transformou a crise fiscal na União Europeia, Merkel foi uma das responsáveis diretas pelo colapso da Irlanda. Ao propor novas regras para o mercado de títulos públicos do bloco, conseguiu realimentar as brasas da especulação com títulos dos países chamados de Piigs.
Nesse novo ataque dos especuladores, a orgulhosa Irlanda faliu e foi obrigada a aceitar um plano de resgate draconiano, com novas reduções de gasto público ao longo dos próximos anos.
Seu governo foi obrigado a prometer eleições gerais para depois de aprovado o Orçamento imposto pelo FMI. E foi justamente sobre esse aspecto do drama irlandês que o cronista do "FT" escreveu.
Uma de suas observações que mais me impressionaram foi a de que em 2008, antes da crise financeira que atingiu o mundo, a dívida pública da Irlanda representava apenas 12% do PIB. Nesse mesmo momento, na Alemanha tão orgulhosa de sua austeridade, a dívida do governo chegava a mais de 50% do seu PIB.
Não se pode -portanto- culpar os gastos desmedidos e irresponsáveis do governo irlandês pelas mazelas de hoje do país de Joyce. Foi o colapso do seu sistema bancário privado -e a necessidade do governo de intervir para evitar um novo 1930- que fez o endividamento público chegar a mais de 60% do PIB.
Em artigo escrito para um instituto privado na Bélgica, o professor Paul de Grauwe, da Universidade de Louvain, mostra de maneira muito lúcida a origem privada da crise fiscal na Europa. Em uma década, a dívida do consumidor passou de 50% do PIB para 70%. Nesse mesmo período, os bancos elevaram seu endividamento para mais de 250% do PIB.
Já a dívida dos governos europeus caiu de 72% do PIB para 68%. E tudo isso aconteceu sob as barbas dos reguladores e de bancos centrais, inclusive o poderoso BC europeu. Em nenhum de seus pronunciamentos a chanceler Merkel toca nessa espinhosa questão.
Se alguma culpa teve o governo irlandês -e os de outros países como a Espanha-, foi permitir uma verdadeira orgia de empréstimos imobiliários nos anos que antecederam a crise.
Mas, em relação a esse comportamento, quem no Primeiro Mundo pode jogar a primeira pedra?
Outra informação impressionante, que esse jornalista cuidadoso do "FT" nos traz, é que os salários na indústria irlandesa são, em média, 20% mais baixos do que os da Alemanha.
Portanto, outra acusação que a chanceler alemã costuma fazer aos países da chamada periferia da União Europeia -salários excessivamente altos dos trabalhadores- também não se aplica ao hoje desnutrido e frágil Tigre Celta.
A Irlanda é a vitima mais dramática de uma onda de liberalismo extremado que varreu o mundo na última década e que gerou duas grandes bolhas especulativas. É a vitima mais dramática porque foi a sociedade que mais se aproveitou de mudanças estruturais corretas e corajosas, realizadas em mais de uma década. E, apesar de diligente discípulo do chamado Consenso de Washington, no final caiu por excessos de um sistema bancário sem controle.
O socorro de mais de US$ 100 bilhões para a Irlanda veio sem a tão temida conta a ser paga pelos investidores, como havia proposto a chefe do governo alemão. Na hora H, ficou mais uma vez claro que as palavras da sra. Merkel representavam apenas bravatas eleitorais, como bem disse nosso popular presidente Lula há algum tempo.
Luiz Carlos Mendonça de Barros, 68, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso). Escreve às sextas-feiras, quinzenalmente, nesta coluna.
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