segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Quando a administração pública vira espetáculo

Marco Antonio Villa

O GLOBO

‘Pulo do gato’ foi buscar apoio eleitoral nos setores desorganizados, nos menos escolarizados e com renda inferior a um salário mínimo

Não é tarefa fácil fazer um balanço dos dois mandatos presidenciais de Lula. Como é sabido, ele elegeu a sucessora e sai do governo com alto índice de popularidade.

Remar contra a corrente não é tradição no Brasil. O “adesismo analítico” é uma característica nacional, infelizmente. E mais ainda agora, pela forma como o presidente se portou durante os últimos oito anos. Lula criou um novo estilo de comunicação presidencial. Na nossa história republicana não há paralelo. Substituiu a rotina administrativa com eventuais manifestações públicas, típicas dos presidentes anteriores, por aparições constantes, sempre em clima de comício, buscando incessantemente o contato com os eleitores. Nestes momentos — e foram centenas durante os últimos oito anos — discursava de improviso, tecia considerações sobre os mais variados temas, atacava seus opositores e estabelecia um vínculo direto com o povo.

Não era com o governo, com um programa, um partido. Não. Era com ele. Nestas cerimônias — a maioria delas, mero pretexto para discursar — o transformou no maior propagandista do seu próprio governo. Mas não só: o reforço constante deste tipo de elo — o presidente e os eleitores — despolitizou a política, empobreceu o debate e fortaleceu o personalismo, tão nocivo à democracia, especialmente em um país em que as instituições democráticas e a cultura política são ainda frágeis.

Com raro poder de convencimento e habilidade no trato com os grandes auditórios — herança advinda dos tempos do sindicalismo —, Lula transformou a administração pública em espetáculo. E obteve êxito. Todas as denúncias — e não foram poucas — de corrupção, filhotismo e tráfico de influência caíram no esquecimento ou, no máximo, atingiram alguns dos seus auxiliares.

Ele saiu ileso. A complacência do presidente banalizou a corrupção, desmoralizou as CPIs e legitimou o saque do Estado.

Lula deu nova vida às oligarquias.

Justamente ele que, durante tantos anos, dizia representar o novo. Fez alianças com o que havia de mais atrasado na vida política nacional.

E não só: obrigou o seu partido a estabelecer acordos locais com os velhos oligarcas, alguns deles — caso de Sarney, no Maranhão — adversários viscerais dos petistas.

Desta forma, desarquivou das estantes empoeiradas da História o mandão local, concedeu legitimidade ao seu perverso domínio e desarticulou os movimentos antioligárquicos. Esta é uma das mais pérfidas heranças deixadas por Lula.

Nestes oito anos, o processo de acumulação capitalista foi intensificado.

Seguindo o ritmo histórico brasileiro, o Estado continuou sendo o grande indutor da expansão econômica, assim como foi durante o Estado Novo, o populismo e a ditadura militar. E como o setor privado não consegue acumular e crescer com suas próprias pernas, mais uma vez o Estado esteve presente.

Porém, ocorreram modificações importantes.

O BNDES jogou um papel fundamental, assim como os fundos de pensão das empresas estatais. O governo Lula criou uma burguesia petista. Fabricou milionários instantâneos, forjou gênios empresariais e transformou empreendimentos regionais em empresas mundiais.

Nem durante a ditadura, a grande burguesia teve apoio tão amplo e duradouro do Estado.

Se para o grande capital foram transferidos recursos, quase que a fundo perdido, para a classe média (no sentido mais amplo) foi ampliado o crédito em escala nunca vista, criando, por exemplo, no setor imobiliário uma bolha que pode estourar nos próximos anos, dependendo do que ocorrer na instável economia internacional. O endividamento das famílias aumentou numa escala superior à do crescimento da renda. O consumismo associado a uma taxa de câmbio sobrevalorizada levou amplos setores das classes médias a “lular”. Numa escolha racional tupiniquim, optaram por fechar os olhos frente a crise ética e valorizar os ganhos econômicos, atitude parecida ao momento do milagre brasileiro (1968-1973), durante a ditadura.

Para os setores organizados, tanto urbanos como rurais, o governo obteve, através da cooptação das lideranças, a tão almejada “paz social”.

Foram anos de tranquilidade no campo da luta de classes. As centrais sindicais foram domadas sem muito esforço. Bastou repassar milhões de reais — que foram descontados dos salários dos trabalhadores, como contribuição obrigatória — para os seus dirigentes. Aos barões do sindicalismo foram reservados também centenas de nomeações no Ministério do Trabalho, no Sebrae e no Sesi. No campo, o MST recebeu generosas dotações oficiais e até esqueceu que o governo Lula distribuiu menos terras que o “neoliberal” FHC. As mutações ideológicas chegaram até aos partidos que estariam à esquerda do PT, como o PCdoB. O antigo partido do socialismo foi seduzido pelos recursos destinados ao Ministério dos Esportes e acabou se transformando no partido do lazer. Trocou como leitura de cabeceira Karl Marx por Paul Lafargue.

Mas o pulo do gato foi buscar apoio eleitoral nos setores desorganizados, onde o PT era muito frágil, entre os menos escolarizados e com renda inferior a um salário mínimo. Sem vontade própria ou poder de mobilização, os beneficiários do Bolsa Família transformaram- se naquilo que todo governo conservador almeja: são fiéis e obedientes eleitores do oficialismo.

Temeroso ao extremo, Lula fez uma pálida gestão econômica. Sem a mínima ousadia, buscou resultados seguros e imediatos, sem nenhuma visão estratégica. Não foi um estadista. Longe disso. Assemelhou- se a um presidente da República Velha. Priorizou o setor primário da economia e desindustrializou o país. Soldou uma estranha aliança econômica entre o capital financeiro e o setor exportador.

O conservadorismo político-econômico também esteve presente na política externa. As causas democráticas e humanistas foram abandonadas.

O Brasil alinhou-se com ditaduras stalinistas, caudilhos passadistas e teocracias. Nas disputas internacionais, o país perdeu todas.

Por paradoxal que pareça, Lula considerou uma vitória a sucessão de derrotas. No campo social, o avanço foi pequeno.

Na educação, continuamos com milhões de analfabetos adultos e com um ensino fundamental formando alunos que desconhecem a língua portuguesa e as quatro operações matemáticas. Contudo, para agradar a suas bases políticas, criou várias universidades públicas. Os programas de habitação popular nunca atingiram as metas previstas.

O saneamento básico apresenta um quadro dantesco. Os programas de erradicação da pobreza fracassaram.

Mesmo assim, foram nas regiões mais miseráveis que a popularidade de Lula atingiu os índices mais altos. Isto mostra a eficácia, por um lado, do Bolsa Família, e, por outro, da capacidade de comunicação e de construção de um discurso político por parte do presidente. E mais: demonstra a ausência nos últimos oito anos de uma oposição atuante, crítica e propositiva.

É provável que este quadro não se repita no próximo quadriênio presidencial.

Uma política de contemporização das contradições sociais e econômicas não permanece eficaz por longo tempo. Além do que, o gestor presidencial precisa ter legitimidade política, que é produto de uma história pessoal, e uma capacidade de equilibrar e conviver com tensões e pressões cotidianas. Mas não só: o cenário econômico internacional apresenta uma séria possibilidade de crises intermitentes, e, internamente, dado o conservadorismo, temos uma base econômica frágil.

Marco Antonio Villa é historiador e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos.
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