quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A rampa

Merval Pereira 

O Globo
O vazamento de documentos sigilosos da diplomacia dos Estados Unidos pelo blog WikiLeaks revelou diversos “segredos de Polichinelo”, coisas que todo mundo sempre comentou mas que, ditas assim em tom de segredo de Estado e reveladas por vazamentos, ganham uma dimensão política que pode ser catastrófica para o Departamento de Estado americano.

É o caso, por exemplo, da relação entre o presidente russo Dmitri Medvedev e o primeiro-ministro Vladimir Putin, comparada, em um dos telegramas, à relação entre Batman e Robin, com o problema adicional de que Batman, “o macho alfa”, é Putin, ficando Medvedev no papel de submisso, sendo o Robin.

Relatei aqui na coluna, durante a campanha presidencial, uma conversa que tive com um investidor estrangeiro interessado no que aconteceria no país na sucessão presidencial, e me surpreendi com sua pergunta:

“Dilma vencendo, não pode ser como na Rússia, com Lula ficando por trás manejando os cordões?”.

Respondi que, se fôssemos uma República parlamentarista, o presidente Lula poderia fazer como Vladimir Putin, que, depois de presidir o país por dois mandatos, transformou-se em primeiroministro e indicou Dmitri Medvedev para presidente.

O que a oposição brasileira acusava como defeito da candidata oficial, ser um mero títere de Lula, era a esperança desse investidor — dos grandes — de que tudo continuaria como está na economia brasileira, com Lula dando seu suporte à sua sucessora.

O modelo chegou a ganhar um apelido que revelava a visão crítica da situação — “Dilmedvedev” —, mas foi vendido subliminarmente pela campanha de Dilma ao eleitorado como garantia de que Lula continuaria a dar as cartas.

Sem dúvida, foi essa “garantia” que pesou muito na eleição de Dilma à Presidência, mas eu achava o modelo de difícil implementação, dadas as condições brasileiras.
É mais provável, dizia, que Dilma, eleita, ficasse dependente de partidos como o PT e o PMDB do que de Lula, pois o presidencialismo brasileiro dá muitos poderes ao presidente da República.

Mas Lula, mais uma vez, está desmentindo a tradição histórica, e a dificuldade de implementação que eu via para que influenciasse a montagem do Ministério de Dilma está se transformando, na verdade, em uma facilidade surpreendente.

Talvez nem mesmo Dilma estivesse preparada para uma atuação tão contundente de seu preceptor, mas Lula não tem constrangimentos em sua ação política.

Há uma parte disso que é natural. Se a ministra Dilma Rousseff foi candidata porque Lula quis, porque Lula decidiu, e a elegeu presidente da República, nada mais natural que ele continue atuando na montagem do Ministério.

Esse é um governo de continuidade, argumentam os governistas, alegando que foi isso que foi aprovado nas urnas.

O que espanta e preocupa, no entanto, é que ela não transparece nenhuma vontade de dar marca própria ao governo que está montando.

Era exatamente essa a grande crítica que se fazia a ela, que não existe politicamente, que não tem luz própria, e seria um mero fantoche do presidente Lula.

E ela parece estar aceitando esse papel com muita resignação.

Até o momento, ela está ressaltando o que de pior há na sua indicação para presidente, que é a de ser uma continuidade no sentido de estar “esquentando a cadeira” para a volta de Lula.

Demonstra não ter capacidade de promover mudanças do governo para imprimir sua marca própria, mesmo dando continuidade às políticas.

Se manteve as mesmas pessoas nos mesmos lugares, ou em lugares semelhantes, por que mudariam de maneira de pensar e agir?

Há, porém, indicações de que algumas diretrizes poderão ser mudadas, se levarmos em conta o discurso que a presidente eleita fez logo depois do anúncio oficial de sua vitória, ou as declarações dos primeiros escolhidos para a equipe econômica.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, por exemplo, continuará no cargo, mas com uma motivação totalmente contrária à sua atuação nos últimos anos.

Ele mesmo diz que o Estado gastou muito nos últimos anos e agora chegou a hora da contenção de gastos.

A ministra do Planejamento, Miriam Belchior, um nome novo no primeiro escalão, mas bastante antigo na hierarquia petista, já atuava no Palácio do Planalto.

Foi casada com o prefeito de Santo André Celso Daniel, assassinado misteriosamente em 2002, assassinato sendo julgado só agora em São Paulo e cuja motivação o Ministério Público atribui a uma estrutura de corrupção montada pelo PT nas prefeituras que administrava à época.

Pois Miriam Belchior, que continuará cuidando das obras do PAC, está anunciando que chegou a hora de fazer mais com menos recursos, o que seria uma boa novidade.

Pode ser, portanto, que, em vez de estar subjugada pela pressão de Lula e do petismo, a presidente eleita esteja só dando demonstrações de habilidade política e deixando para montar seu verdadeiro governo mais adiante, quando já estiver com as rédeas do poder nas mãos.

Há um precedente histórico, que já relatei aqui na coluna. O governo do general João Figueiredo começou com uma estrutura baseada no governo do antecessor, general Geisel, principal responsável por sua indicação.

Em pouco tempo, Figueiredo começou a montar seu governo sobre o que herdara de Geisel: Golbery, que permanecera no Gabinete Civil, acabou saindo, dando lugar a Leitão de Abreu; o economista Mario Henrique Simonsen saiu, deixando em seu lugar Delfim Neto, e assim por diante.

Golbery então comentou que, quando o presidente eleito sobe a rampa do Palácio do Planalto com todos aqueles guardas batendo continência, ao chegar no topo já está convencido de que chegou ali por méritos próprios, e terá sempre algum amigo para garantir isso a ele.

Dilma ainda não subiu a rampa como presidente eleita.

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