quarta-feira, 2 de março de 2011

Credibilidade

MERVAL PEREIRA
O GLOBO

A confirmação pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, de que o Tesouro fará um novo aporte de recursos ao BNDES ofuscou o eventual brilho do corte de R$50 bilhões anunciado pelo mesmo governo. O ministro não revelou de quanto será esse aporte, mas no mercado há quem aposte em mais R$55 bilhões.

Um gesto de contenção de gastos renegado pela repetição da manobra contábil que permitirá que a economia volte a ser estimulada com um impulso fiscal de mais de 1% do PIB, manobra que vem tirando a credibilidade das contas públicas.

Todos os agentes econômicos consideram que o governo só recuperará a credibilidade se adotar medidas legais que impeçam esses truques contábeis.

A partir de 2008, com a eclosão da crise financeira internacional, o governo decidiu expandir a economia para combater seus efeitos.

Mas, para evitar que a dívida líquida aumentasse, em vez de capitalizar o BNDES da maneira tradicional, trabalhou por fora do Orçamento.

Um número que passou a ser observado com atenção, mesmo que não afete as estatísticas fiscais, é o da dívida bruta.

O Ministério da Fazenda está usando o que o mercado identifica como "um truque" para repassar recursos aos bancos públicos sem aumentar a dívida líquida, este, sim, um número que o mercado financeiro acompanha, especialmente sua relação com o PIB.

Desde junho de 2008, o volume de crédito do BNDES, que era insignificante para as contas públicas, subiu bastante, ficando em torno de 5% do PIB.

A dívida líquida do setor público, critério mais usado pelo governo e pelo mercado, que representava 61% do PIB em 2002, em janeiro de 2011 caiu para 40.1%.

Já a dívida bruta, antiga metodologia que foi usada até 2007 e que é a mais compatível com a adotada pelo FMI e pela maioria dos países, subiu para 63.9% do PIB.

Países que têm investment grade como o Brasil possuem uma dívida bruta em torno de 40% do PIB, embora os Estados Unidos já tenham chegado aos 80%, devido às medidas que tomou por conta da crise.

São várias as maneiras que o governo encontrou para maquiar as contas públicas. No ano passado, uma manobra fiscal da União na capitalização da Petrobras rendeu R$31,9 bilhões e levou a um superávit primário recorde em setembro, de R$26,1 bilhões. Sem a manobra, haveria déficit de R$5,8 bilhões.

No final do ano a Caixa recolheu R$4 bilhões de imposto por conta de uma briga judicial com a Receita Federal, um prejuízo que no seu próprio balanço não estava previsto porque a Caixa teria ainda um longo caminho a percorrer com recursos judiciais antes de pagar.

E, mesmo que tivesse que pagar ao fim de todos os recursos, poderia descontar do próprio governo, de quem é credora em R$15 bilhões.

As despesas de custeio - gastos do dia a dia do governo -, que sempre são pagas no mesmo ano, foram transferidas de dezembro do ano passado para janeiro, e, por acaso, o que o governo economizou em dezembro foi o que aumentou no custeio em janeiro, indicando que apenas se adiou a despesa para melhorar os números de 2010.

Há dez dias, foi anunciado que a Caixa receberá do Tesouro R$2,2 bilhões em ações da Petrobras e da Eletrobras, o que vai alavancar em cerca de R$30 bilhões sua capacidade de empréstimos, enquanto o BNDES receberá R$6,4 bilhões só em ações da Petrobras, que ampliarão em R$100 bilhões sua capacidade de financiar projetos, tudo sem impactar a dívida líquida do governo.

Outro truque que está sendo utilizado pelo governo é usar a rubrica "restos a pagar", adiando às vezes em anos pagamentos que deveriam ter sido feitos.

Esses pagamentos já chegam a mais de R$120 bilhões. Quando, nos anos 80 do século passado, o então ministro da Fazenda Delfim Neto acertou com o FMI essa contabilidade, os "restos a pagar" nem entravam na contabilidade oficial da dívida porque representavam muito pouco.

Mas hoje esses "restos" ganharam uma dimensão própria e transformaram-se em mais uma distorção das contas públicas.

Houve uma arrecadação recorde em janeiro de impostos que normalmente as empresas só costumam pagar em março, quando divulgam seus balanços.

Há a desconfiança no mercado de que foram empresas estatais pagando imposto antes da hora.

Perdeu-se o referencial, ninguém sabe se esse resultado de janeiro é bom mesmo ou se fruto de mais uma manobra.

Os créditos do Tesouro junto ao BNDES desde 2008 até dezembro de 2010 já ultrapassam R$230 bilhões, tendo chegado ao seu máximo em 2010 com R$107,5 bilhões, ou 2,9% do PIB, quando já não era necessário o governo estimular a economia, que vinha num ritmo de recuperação bom.

Agora então, que é preciso conter o ritmo da economia com cortes do gasto público, fica mais incongruente ainda fazer novo aporte ao BNDES.


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